Bernardo, não saias hoje de casa, fica, dizia ela, pedindo-lhe que não fosse, esta semana, à reunião. Impossível, é impossível não ir. Bernardo divide-se entre o quarto e a sala em busca de papéis, de jornais, de documentos que vai colocando dentro da pasta, desordenadamente. Não saias hoje de casa, a sério, olha a tua saúde. Bernardo vê-se no espelho uma última vez. É impossível não ir. Mesmo que não lhe apeteça, mesmo que saiba que não vai mudar nada. Bernardo veste o sobretudo, embrulha o cachecol à volta do pescoço e pega no guarda-chuva. Até logo, não esperes por mim esta noite, devo chegar tarde. A porta abre. A porta fecha.
Trinta e oito graus de febre, o nariz entupido, a garganta bastante irritada, os olhos chorosos e vermelhos. Bernardo está doente. Tenta alargar os passos ao máximo. Chove imenso esta noite, tem chovido assim durante todo o Inverno. Desde há quinze dias, então, tem sido o cúmulo. E hoje parece que chove ainda mais. Nos terrenos mais próximos do rio já se registam algumas inundações. Produções de vários agricultores estão já perdidas este ano. Mais uma chatice. Mais protestos para organizar. Mais pedidos de subsídios para as famílias atingidas pela desgraça. Mais uma conferência de imprensa para expor tudo isto. Bernardo já quase que corre com a chuva a correr atrás dele, sempre mais forte. A tosse a aumentar, Bernardo sente dificuldades em respirar. Chega finalmente à sede. Fecha o chapéu-de-chuva e larga-o junto aos outros que já chegaram. Tosse.
Está frio, muito frio, na sala de reuniões. Talvez seja devido à febre ou só por uma sensação de isolamento. Os outros parecem não se importar com o frio. Para eles, só a chuva se constitui como verdadeiro problema. Alguns acabaram por ficar em casa. Consideram que não vale a pena sair de casa numa noite de Inverno para ir a uma reunião. Por paradoxal que isso possa parecer, esses, os que não vêm, ainda acreditam que toda a situação possa ser alterada. Bernardo senta-se à mesa e já não acredita. Bernardo, engripado e friorento, contra a chuva e contra a vontade da mulher, vem à reunião para debater as questões. Mas pouco o faz já acreditar.
Não é por má-fé, mas Bernardo não acredita que o partido o esteja a ouvir. As suas dúvidas crescem quando vê a direcção tomar decisões sem ter em conta as opiniões dos que, como ele, trabalham há anos nas organizações de base. Pior que tudo, não acredita que o partido acredite nele. Sempre que dá novas sugestões ou coloca questões diferentes, ouve da boca dos responsáveis um falamos nisso depois, ou a prioridade não é essa ou, o mais estranho ainda, a população não iria entender. No fundo, quando não acreditamos que acreditem em nós, desfaz-se a corrente da confiança, quebra-se o elo entre a Ideia e o homem. Não há Ideia que aguente quando o homem não acredita.
Na reunião, alguns parecem deixar-se adormecer. Enquanto Bernardo fala, há quem saia para fumar. Bernardo não acredita mas continua a falar, continua a criticar, continua a propor. Os que acreditam foram lá fora fumar um cigarro. As intervenções desfiam-se mornamente. A população não iria perceber se votássemos assim, Bernardo. Alguns parecem deixar-se adormecer. Fica tudo na mesma, fica sempre tudo na mesma. Há uma voz que diz a Bernardo, repetindo incessantemente, que tudo ficará sempre, para sempre, na mesma. Bernardo volta a pedir a palavra e fala.
A Ideia já não é tão forte como era. Há quem continue a acreditar sem pôr reservas mas a maior parte tem sérias dúvidas e já não acredita. Os que acreditam continuam a utilizar o método. Continuam, como dizia Kundera, a acreditar que se pode chegar ao paraíso. Os que já não acreditam queriam largar o método. Seguros de que não há possibilidade de se chegar ao paraíso, consideram que é agora mais importante que se tente mudar alguma coisa, por pequena que possa parecer. Bernardo não acredita. Quer dizer ali, na reunião, que não acredita mas deixa para depois. O assumir da separação é sempre um processo longo e doloroso. Dentro dele, ele sabe-o, a Ideia já não produz os mesmo efeitos, a Ideia já não é a mesma. Os que acreditam olham para ele como se de uma simples opinião não compartilhada pela maioria se tratasse. Podes falar sempre que quiseres.
A reunião acaba bastante tarde. A chuva não parou, aliás, chove ainda mais. Bernardo volta a pé para casa, o passo curto, muito lento. As suas ideias reviram-se por entre gotas de água que caem. No chapéu-de-chuva criam-se batidas intensas, desordenadas, como as suas ideias. A tosse não parou, aumentou. Bernardo não acredita e aqueles que acreditam já não o vêem, já não o conhecem. Quando ele pede a palavra já quase não o ouvem. Quando ele telefona já não atendem. Na próxima reunião, ele já não vai sair de casa. Será devido à chuva ou a uma visita de um parente ou a outra razão qualquer. Depois a porta vai estar fechada e Bernardo já não irá às conferências de imprensa. Vai ficar tudo na mesma. Como se os olhos de Bernardo já nem estivessem por ali.
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segunda-feira, maio 24, 2004
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