entretia-se a rasgar papéis e a olhar os outros. era assim que passava o tempo. andava sempre na rua, fosse manhã cedo, fosse noite tarde. sempre na mesma cidade, agia como se todos os conhecessem. isso acabava por ser verdade. como sempre tinha sido, as crianças tinham medo dele e as pessoas grandes gostavam de o cumprimentar quando o viam a passear pela rua. depois, entrava em cafés e pedia copos de leite. ou então, entrava em lojas e pedia para levar um caderno, uma folha, qualquer coisa. os papelões foram, para ele, a melhor invenção do mundo.
então, ele era assim. baixinho, não tinha muito mais de um metro e sessenta e cinco. deixava sempre crescer o cabelo e a barba até que alguém o puxasse para dentro de um barbeiro para o cortar. no inverno, guardava-o dentro de um barrete grande. a roupa estava muitas vezes suja, algumas vezes limpa. uma perna andava sempre atrás da outra, como se fosse preciso que a puxassem por ser tão calona. estava muitas vezes parado, a olhar para as coisas e para a vida. a vida, grande parte do tempo, parece ser uma coisa que merece ser olhada com os olhos bem abertos.
um dia, entrou num café com um monte de papéis debaixo do braço. encolheu-se junto ao balcão, pousou os papéis numa mesa. entreteu-se a olhar para as pessoas, a andar de um lado para o outro entre as mesas do café. piscou um olho à televisão e bebeu um copo de leite morno. depois encostou-se à parede e fingiu que lia os cartazes que anunciam festas para o próximo fim-de-semana. foi aí que se colocou debaixo da televisão, a rasgar papéis e a olhar para as pessoas que viam televisão. entretia-se assim. depois, saiu do café.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
terça-feira, março 23, 2004
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