Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

terça-feira, agosto 26, 2003

eu sou aquele que te quer...

tu a dançares naquele palco minúsculo e eu sentado a ver, a olhar para as luzes, a acender e a apagar, azuis amarelas verdes vermelhas, a incidirem sobre a tua pele que se descobria, o ruído dos copos a baterem nas mesas, os piropos dos homens a cada peça de roupa que voava, as vozes roucas a abafarem a música, o teu olhar fechado, a esconder de se mostrar nervoso, assustado, como é sempre esse teu olhar, quando tem que enfrentar um outro.
tu a tirares a roupa ao som daquela música velha e eu sentado a ver, a olhar para o pano que servia de cenário, algo que me fazia lembrar uma capa de veludo pisado, gasto, e a perceber que nada daquilo fazia sentido senão o facto de ser aquela dança repetida três vezes ao longo da noite que nos pagava o quarto numa pensão, ainda pior do que o palco, era aquela dança feia que nos dava de comer e ainda nos sobrava (na maior parte das semanas) uns trocos para irmos ao cinema na tua folga. eu não queria viver às tuas custas, mas estava sempre desempregado. ora era o patrão que embirrava comigo ou o trabalho que era demasiado pesado ou outra coisa qualquer. eu sou, fundamentalmente, um artista. um artista a sério. e tu sabes que sim. e é por saberes que me levas sempre contigo para todo o lado.
tu com aqueles movimentos todos em cima do palco e eu a fazer amizade com o barman. ao fim de uns dias ali já ele me oferecia umas bebidas, sem que o gerente visse. é um gajo porreiro. fartou-se de levar pancada durante os anos que esteve na tropa (foi a única maneira de se endireitar de uma infância a ser ladrão para alimentar os vícios dos pais) e entrou no negócio da noite. também ele via em mim um artista. dizia que gostava de me ouvir falar. e quando percebeu que eu falo mais com a ajuda dos copos, começou a ajudar à festa. eu passava noites inteiras na conversa com ele. os ruídos dos copos, os piropos, as vozes roucas , o olhar confiante do barman (tantas vezes contra o teu olhar de pânico no palco), eu a virar-te costas e a pedir mais uma cervejinha, o copo cheio, e quando me volto a encadear com as luzes, tu a saíres de palco e uma voz rouca lá à frente, a puta estava a chorar.
tu a chamares-me todos os nomes que foste capaz de te lembrar e eu bebedo, com a bexiga aos saltos, sem ser capaz de pensar na coisa certa para se dizer naquelas alturas em que temos a sensação de ter feito uma coisa muito errada, mesmo que não nos lembremos do que foi. não me deixaste dormir no quarto naquela noite, aliás, prometeste que nunca mais me deixarias dormir contigo, e no dia a seguir, quando te fui procupar no bar, o porteiro disse-me que tu não me tinhas deixado entrar. esperei-te à saída, mas não te consegui ver. o barman é que me encontrou e levou-me para casa dele. fiquei uns dias por lá e tentei falar contigo outra vez. estranho como uma miúda que se despe três vezes por noite num bar pode ser esquecida tão facilmente. ninguém sabia onde te tinhas posto. cheguei a pensar que nem sequer tinham dado pelo teu desaparecimento. quando voltares, sou capaz de estar no mesmo lugar do bar, daquele onde dá para ver bem as luzes, azuis amarelas verdes vermelhas, a mostrarem a miséria do pano de cenário.

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