Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

domingo, agosto 31, 2003

fode-me

tens a mania de me ligar a meio da noite para me dizeres que me queres foder. acordas-me. aliás, pouco te importa o que eu esteja a fazer. a dormir, a ver um filme, num bar com amigos. isso a ti não te interessa nada. telefonas-me e dizes-me que me queres foder. eu tento disfarçar a forma como me desinquietas. tento falar contigo como se tivesses um qualquer recado para me dar. às vezes, se estou mais chateado, digo-te que estou a dormir e que não me apetece ouvir-te. mas tu não te ralas. falas do que estás a fazer com a tua mão, do que estás a pensar, do que te apetece que eu te faça. agora, nesse preciso momento. queres que eu te foda.
nos primeiros tempos até achava graça. pensava também que fazias isso só para gozar comigo e ria-me. o pior é que tu nunca mais paraste com a história. conveceste-me a ir tomar café contigo em lisboa. bem, nem foi bem isso. eu convenci-te que ia tomar café mas sem nenhum compromisso. tu quase que me comeste no meio das mesas do colombo. eu a fugir para a fnac, para te pôr a ver os livros, e tu sempre a agarres-me o braço, a enconstares o teu corpo contra mim, a quereres ver se eu me excitava. sinceramente, sentia-me muito atrapalhado com tudo aquilo. quiseste dar-me boleia até ao autocarro. quase me violaste no parque de estacionamento.
e agora, para além dos telefonemas, ver-te à porta da minha casa, a abrires a camisa ainda eu estava a espreitar pelo visor, a entrares com as mamas já de fora, a gritares, fode-me, maricas, fode-me, o daniel na sala, incrédulo, ele achava que eu exagerava no retrato que fazia de ti, tu a tirares a saia, com umas cuecas de renda vermelhas, a tentares beijar-me à força, a dizer que me amas, o daniel a levantar-se e a vir ao nosso encontro, tu a meteres as mãos dentro das minhas calças, eu a dizer para parares, para ficares quieta, o daniel a enervar-se e a perguntar que merda era aquela, e tu, quando finalmente percebeste, quando finalmente te entrou na cabeça que eu não queria foder contigo porque provavelmente nunca vou querer foder com nenhuma gaja, tu quase toda nua no corredor da minha casa, em frente ao meu namorado, não encontraste mais nada para me dizer do que, és um maricas insensível de merda.
e saíste nua para a rua.

impostos

1

Acabar com o ar que se respira.
Para não restarem dúvidas sopradas aos ouvidos.

2

Deixar que os pés possam ser livres
de nunca pisar onde lhes mandam parar.

3

Ter,
de si para si,
uma tendência de ver o mundo
pintado de outra cor qualquer.

4

Gostar de rejeitar presentes
das miúdas bonitas lá da escola.

5

Espirrar,
quando tudo parecer perfeito.

quinta-feira, agosto 28, 2003

a mancha no lençol

estava eu a passear nu pelo corredor da casa quando ouvi a chaves a tilintar mesmo encostadas à porta da rua. o meu primeiro pensamento foi de incredulidade. não podias estar a chegar a casa aquela hora, não podia mesmo ser. ainda por cima encontrares-me naquela figura, o corpo horrivelmente exposto, os cabelos pastosos acabados de sair da cama, o hálito de ressaca. quando a porta se abriu, percebi que o estado das coisas era muito, mas mesmo muito, pior. a tua mãe entrou em casa e, quase em simultâneo, soltou um "ih" de surpresa. "o que é que estás a fazer aqui? assim?"
não me foi difícil explicar à tua mãe que me tinhas dado abrigo depois de uma noite de copos no bar da praia. que era muito perigoso pegar no carro aquela hora, as brigadas de trânsito, os olhos a quererem-se fechar, enfim, essas coisas todas.ela compreendeu perfeitamente. depois, como se estivesse a olhar para o lado, perguntou-me se eu tinha dormido contigo. eu apressei-me a dizer que não, claro que não, Dona São, nós somos só amigos, isso nunca iria acontecer. ela sorriu. percebi através daquele sorriso que continuava totalmente nu perante o olhar da tua mãe. corei. não é a primeira vez que eu vejo um homem nu, disse ela. pois a mim, é a primeira vez que me vejo nu à frente da mãe de alguém. ela sorriu e abraçou-me. não é nada de especial, disse ela, enquanto me mordia a orelha.
é claro que me excitei com a situação. afinal a tua mãe é uma mulher linda e muito charmosa. para além disso, sabe bem como pôr um gajo à vontade. deixei-me levar, foi só isso. já há uns meses que não tinha nada com ninguém e não devemos negar aquilo que nos cai do céu. foi só por isso. e podes estar descansada que o sexo foi bom mas não há nenhuma perspectiva de eu vir a ser o teu padrasto. nenhuma mesmo.
custa-me agora é estar aqui contigo, outra vez no bar da praia, a tentar agir como se nada tivesse acontecido. é quase impossível não estar a pensar que fui para a cama com a tua mãe, mesmo que não te diga nada disso. bebo uma frize tangerina e tu gozas comigo. ris-te da minha ressaca e do meu olhar de pânico ensonado perante a tua vodka. se tu soubesses. o que me salva é que depois de amanhã voltas para Bilbau, vamos voltar a estar três meses a falar só pelo mail e quando tu voltares já ninguém se vai lembrar desse "incidente". vai ser melhor assim, não te contando. aceitas muito melhor a ideia de eu ter batido uma punheta para cima do teu lençol.

quarta-feira, agosto 27, 2003

hein?

Steve McQueen saiu de cima da mota e colocou, com um vagar digno de um slow-motion desportivo (daqueles onde se descobre que foi penalty...mesmo), os pés na estrada empoeirada daquela terra que não lembrava ao diabo. a sua face de guerreiro do asfalto estava protegida por um lenço de motivos vermelhos que se apressou a baixar para o pescoço. isso originou uma fronteira bem por cima do nariz de Steve: acima dela os óculos empoeirados, abaixo dela, bem, também não se pode dizer que uma cara com uma barba de dez dias seja limpa.
o poeta estava sentado debaixo do telheiro do saloon.mas não, não era um saloon qualquer. naquela cidade, há muito que deixara de haver cowboys.o poeta, ao ver aquela figura, toda vestida de um cabedal empoeirado, não se interessou e voltou os olhos para o livro. dentro do saloon só havia mulheres, cada uma delas a tecer uma camisa (anota-se aqui a referência à Odisseia, lida durante a faculdade, com a preciosa ajuda de um livro de apoio, graciosamente oferecido pelos papás, depois de uma visita a França).Steve chegou-se ao balcão e pediu um copo de água gaseificada. O barman sorriu, muito. Estava completamente farto de receber idiotinhas a pedir copos de salsaparilhano gozo. serviu o copo a Steve e indicou-lhe uma porta no andar de cima.Steve aquiesceu.ignorante.
dentro do quarto uma cama vazia, e junto à janela, Ursula Andrews vestida de acordo com as tradições da idade da conquista do velho oeste. Steve puxou uma cadeira, sentou-se e Ursula declamou-lhe vários textos de diferentes filmes que protagonizou.a experiência agradou-lhe. quando Ursula saiu do quarto, Steve espreitou à janela e percebeu que do outro lado da rua era a gare de austerlitz.
entretanto, no andar de baixo, as mulheres tinham largado as camisas (fim da citação homérica) e iniciado um chá dançante. a um canto do bar faziam-se inscrições para um torneio de crocket.o barman fervia um pote de água enquanto o seu ajudante (aparecido não se percebe muito bem de onde) cortava cascas de limão.Steve desceu as escadas e saiu à rua. o poeta estava agora mergulhado no livro até à cintura. voltando ao slow-motion da entrada, Steve caminhou até à mota, subiu acima dela e arrancou, pela pradaria, qual Lucky Luke.

je bois

Je bois
Systématiquement
Pour oublier les amis de ma femme
Je bois
Systématiquement
Pour oublier tous mes emmerdements

Je bois
N'importe quel jaja
Pourvu qu'il fasse ses douze degrés cinque
Je bois
La pire des vinasses
C'est dégueulasse, mais ça fait passer l'temps

La vie est-elle tell'ment marrante
La vie est-elle tell'ment vivante
Je pose ces deux questions
La vie vaut-elle d'être vécue
L'amour vaut-il qu'on soit cocu
Je pose ces deux questions
Auxquelles personne ne répond... et

Je bois
Systématiquement
Pour oublier le prochain jour du terme
Je bois
Systématiquement
Pour oublier que je n'ai plus vingt ans

Je bois
Dès que j'ai des loisirs
Pour être saoul, pour ne plus voir ma gueule
Je bois
Sans y prendre plaisir
Pour pas me dire qu'il faudrait en finir...

Boris Vian (encontram mais palavras deste "meu amor" em http://borisvian.free.fr )

sub-16

acordo a ouvir a chuva lá fora, o vento a empurrá-la contra os estores fechados do meu quarto, a rádio ligada numa conversa de doidos, marte a aproximar-se (ou não) do planeta terra. relembro-me do Tim Burton e dos seus homenzinhos verdes e, depois, também me lembro da sua história de natal, vista na véspera do 25 de dezembro, sozinho na sala enquanto toda a gente na cozinha a comer, sem que nenhuma das pessoas lá de casa se apercebesse que era aquele momento em que eu sentia o natal pela primeira vez como um adulto, a ver aquele filme estranho, tão fora de órbitra como os meus pensamentos quando eu tinha 16 anos.
olho, no escuro, o visor do telemóvel. é por ele que tu chegas, sempre com palavras doces, sempre com uma meiguice enternecedora que eu não encontro na minha pele. e dizes-me que o tempo está mau e que, na rua, te falta um abraço. eu visto-me à pressa e vou para o café, levar com o fumo de cigarros inconvenientes na cara. fico a olhar para a televisão, sempre num mesmo canal (tenho a ligeira impressão que o homem do café tem gosto em escolher o pior de todos os canais disponíveis no cabo), a repetir sempre os mesmos anúncios e as mesmas imagens de todos os dias, ainda para mais com o som de fundo de uma irritante rádio local. passo os olhos pelo Kundera mas estou inquieto. sinto nas pernas mais energia do que aquela que me é necessária dispender. quando eu tinha 16 anos também era assim.
acabo por me procurar onde eu sei que não me vou encontrar. mas insisto na ideia de que, dando-me aos outros, me ganho um pouco mais a mim. isso pode parecer estranho para ti, que estás aí escondida, longe. mas daqui de dentro do filme, é agradável perceber que já não tenho 16 anos e que já convivo muito bem com a ideia de que as pessoas, lá na cozinha, não se apercebem que eu estou a viver momentos marcantes na minha vida. ao fim deste tempo todo, estou finalmente a aprender a deixar de ter essa idade onde se tem o desgosto de se vestir como os dj's...

terça-feira, agosto 26, 2003

não me apetece

folheio o livro de canções do Boris Vian. Hoje apetecia-me colar a letra da música do "je bois". infelizmente não a encontrei. descanso o corpo depois de um dia de piscina. penso nas coisas que observei hoje. as pessoas, as atitudes, as pequenas histórias que origino no meu pensamento.
acabei a tarde numa esplanada em frente ao mar, a beber umas cervejas e a falar de nada com os meus amigos. o mar estava bravíssimo, mas o sol brilhava e aquecia-me a cabeça.
quando chego em frente ao computador, cheio de intenções e de pequenas coisas para inventar o meu texto. o que tenho para vos dizer, é que hoje não me apetece escrever.é verdade, hoje não me apetece. recosto-me na cadeira do computador, e carrego no "post"...

eu sou aquele que te quer...

tu a dançares naquele palco minúsculo e eu sentado a ver, a olhar para as luzes, a acender e a apagar, azuis amarelas verdes vermelhas, a incidirem sobre a tua pele que se descobria, o ruído dos copos a baterem nas mesas, os piropos dos homens a cada peça de roupa que voava, as vozes roucas a abafarem a música, o teu olhar fechado, a esconder de se mostrar nervoso, assustado, como é sempre esse teu olhar, quando tem que enfrentar um outro.
tu a tirares a roupa ao som daquela música velha e eu sentado a ver, a olhar para o pano que servia de cenário, algo que me fazia lembrar uma capa de veludo pisado, gasto, e a perceber que nada daquilo fazia sentido senão o facto de ser aquela dança repetida três vezes ao longo da noite que nos pagava o quarto numa pensão, ainda pior do que o palco, era aquela dança feia que nos dava de comer e ainda nos sobrava (na maior parte das semanas) uns trocos para irmos ao cinema na tua folga. eu não queria viver às tuas custas, mas estava sempre desempregado. ora era o patrão que embirrava comigo ou o trabalho que era demasiado pesado ou outra coisa qualquer. eu sou, fundamentalmente, um artista. um artista a sério. e tu sabes que sim. e é por saberes que me levas sempre contigo para todo o lado.
tu com aqueles movimentos todos em cima do palco e eu a fazer amizade com o barman. ao fim de uns dias ali já ele me oferecia umas bebidas, sem que o gerente visse. é um gajo porreiro. fartou-se de levar pancada durante os anos que esteve na tropa (foi a única maneira de se endireitar de uma infância a ser ladrão para alimentar os vícios dos pais) e entrou no negócio da noite. também ele via em mim um artista. dizia que gostava de me ouvir falar. e quando percebeu que eu falo mais com a ajuda dos copos, começou a ajudar à festa. eu passava noites inteiras na conversa com ele. os ruídos dos copos, os piropos, as vozes roucas , o olhar confiante do barman (tantas vezes contra o teu olhar de pânico no palco), eu a virar-te costas e a pedir mais uma cervejinha, o copo cheio, e quando me volto a encadear com as luzes, tu a saíres de palco e uma voz rouca lá à frente, a puta estava a chorar.
tu a chamares-me todos os nomes que foste capaz de te lembrar e eu bebedo, com a bexiga aos saltos, sem ser capaz de pensar na coisa certa para se dizer naquelas alturas em que temos a sensação de ter feito uma coisa muito errada, mesmo que não nos lembremos do que foi. não me deixaste dormir no quarto naquela noite, aliás, prometeste que nunca mais me deixarias dormir contigo, e no dia a seguir, quando te fui procupar no bar, o porteiro disse-me que tu não me tinhas deixado entrar. esperei-te à saída, mas não te consegui ver. o barman é que me encontrou e levou-me para casa dele. fiquei uns dias por lá e tentei falar contigo outra vez. estranho como uma miúda que se despe três vezes por noite num bar pode ser esquecida tão facilmente. ninguém sabia onde te tinhas posto. cheguei a pensar que nem sequer tinham dado pelo teu desaparecimento. quando voltares, sou capaz de estar no mesmo lugar do bar, daquele onde dá para ver bem as luzes, azuis amarelas verdes vermelhas, a mostrarem a miséria do pano de cenário.

domingo, agosto 24, 2003

estás contente por me ver?

pedes-me sempre para te tocar como tu queres mas eu não quero tocar-te dessa maneira. acho até que não te vou tocar mais. agora, sempre que chego a casa, o que me apetece é sentar em frente à televisão, ver as notícias, e depois procurar por um filme, uma série qualquer daquelas americanas, para rir. já não me apetece beijar-te, nem abraçar-te. já nem me apetece olhar para ti. tu pedes sempre para te tocar como tu queres.
quando namorávamos até que era engraçado. eu era muito inexperiente e agradava-me que fosses assim, que me ensinasses. gostava de aprender a pôr-te excitada.de certa maneira isso tornava-me também mais desejável para ti. gostavas de estar comigo porque eras tu que mandavas.eu fazia tudo o que tu querias. tu passavas-te tantas vezes nas minhas mãos. quando namorávamos.
depois do casamento continuou sempre assim. tu a exibires-te. tu a saltares para cima de mim. eu a ficar excitado, cada vez mais louco por te consumir. tu a dizeres como querias que eu te tocasse naquele dia, naquele momento, naquela posição.quero ser sincero contigo, as coisas começaram a não ser tão engraçadas, começou mesmo a chatear-me que tu me dissesses aquelas coisas. afinal, eu já sabia como era, eu já te conhecia. muitas vezes até, quando tu falavas o que querias, já eu me preparava para o fazer. eu já sabia como era.depois do casamento.
tu sabes que eu não tenho problema nenhum em te dizer estas coisas. mas o que me apetece mesmo agora é ficar quieto, sossegado, sem pensar, sem fazer nada. para mim seria mesmo bom que fosses trabalhar para outro lado, ver-te só ao fim-de-semana.queria ter muito tempo para estar sozinho, para não te ver. não que o nosso casamento esteja acabado.mas estou cansado de te ter a exibires-te à minha frente sempre que chego a casa. estou farto das tuas tentativas para me excitar. tu dizes que qualquer homem teria vontade de te saltar em cima. mas eu não, querida, eu não. tu sabes que eu não tenho problema nenhum.

sábado, agosto 23, 2003

sonhos que nunca se realizam

vou tirando a roupa enquanto me mantenho com as pernas esticadas sobre o sofá. olho os dedos dos meus pés com um cuidado que, visto de fora, poderia parecer doentio. imagino que, concentrando-me bastante, poderei ver as unhas crescer. sinto-me numa espécie de mutação, num momento em que todas as minhas energias desejam ser canalizadas para dentro de mim.
vario entre a contemplação do meu corpo e os meus sonhos de auto-mutilação. acordo sobressaltado da minha falta de vista. quando fecho os olhos com muita força sou capaz de ver o meu sangue a fluir. como se eu me mordesse e ficasse com a face coberta de mim mesmo.
caminho nu pela casa. acabado de sair debaixo do chuveiro deixo um rasto de água pelo soalho. páro em frente dos vários espelhos que tenho pelo quarto, pela sala, no corredor. sim, sou totalmente egocêntrico. enquanto caminho, penso na mulher que me olhou ontem, no café. deixo que as minhas mãos me toquem pelo peito, pelas ancas. deito-me junto à  janela da varanda, onde o sol bate forte durante a tarde. o calor seca-me o corpo enquanto me masturbo. sinto pequenas gotículas de suor a crescerem-me na testa.penso nas pernas daquele sorriso de ontem. tento imaginá-lo despido. quando sinto o sémen escorrer-me pelas mãos penso no porque da imaginação me dar mais gozo do que a realização de um sonho.
talvez seja (engano-me) pelos sonhos nunca se realizarem.

Epitáfio

Devia ter amado mais, ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais e até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer
Queria ter aceitado as pessoas como elas são
Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração

O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar

Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor
Queria ter aceitado a vida como ela é
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier

O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar

Música de Sérgio Brito, inserida no álbum dos Titãs " A melhor banda de todos os tempos da última semana" (2001)

quinta-feira, agosto 21, 2003

como se diz manhã em latim?

tenho a mania de me encher de brios a cada manhã, fazer planos para um monte de coisas sérias que terei que fazer durante as 18 horas seguintes, levantar-me cedo, tomar um banho, pôr perfume, lavar os dentes. Depois também tenho vontade de ser simpático para toda a gente, continuar a pensar que ainda posso salvar o mundo, resolver os problemas e as carências dos outros ( sejam de inteligência, sejam afectivas).
mas então vem aquela dormência que sentimos quando ainda estamos deitados na cama e os estores fechados nos permitem pensar que a noite é eterna e que ninguém vai fazer barulho na cozinha porque, simplesmente, todos vão dormir profundamente pela eternidade. é nessa hora que se ouve o gato a deitar um copo da mesa abaixo, a mãe a gritar com a desarrumação, a irmã a aumentar o som da Avril Lavigne até ao inaudível. nesses momentos penso que o mundo não precisa de arranjo.
depois, bem, depois o melhor é levantar os pés da cama e ligar o computador. não há melhor forma de começar o dia do que lendo e-mails. o problema é que nos deitámos às três da manhã e, vá-se lá saber porquê, nenhum dos nossos amigos internautas nos enviou palavras ou imagens entre as três e as dez da matina. Existem mistérios que eu não consigo resolver.
no café, de manhã, estão sempre as mesmas pessoas. um velho logo à porta e uma velha na mesa do fundo. entre um e outro um balcão imenso de um lado e umas mesas repetidas do outro. entre mim e o meu hábito de ler "A Bola" antes do meio-dia, muitas vezes o velho que se eterniza por detrás de imensas dioptrias, outras vezes desconhecidos a quem não reconheço o direito de irem ao "meu" café, ler o "meu" jornal, mas contra os quais nada posso. alguns dias ainda penso em dar uma de forte e tentar fazer um motim só para ler o jornal. nessas alturas apercebo-me de que o meu vício é perfeitamente recuperável. quando não leio o jornal, o pior que me pode acontecer é ficar à parte dessa imensa maioria de gente que sabe que pessoas que respondem ao nome de Pipoca, Comboio ou Akyofna, não vão poder jogar no próximo fim-de-semana porque estão lesionadas.
ao final da manhã, regresso a casa. sou capaz de ficar dias inteiros a olhar para o visor do telemóvel, com os minutos a passar no topo direito, a sigla tmn a meia altura, e o indicativo da minha região a passar, qual anúncio publicitário: 261 Torres ( e depois) Vedras. são essas as vantagens de se viver numa cidade que tem um nome maior do que um visor de um telemóvel. resisto, com alguma ansiedade, a contactar todas as pessoas da minha lista telefónica. fico à espera que alguém me ligue, que alguém tenha uma notícia importante para me dar, que alguém me convide para fazer alguma coisa interessante. treino a minha capacidade de manter os olhos abertos sem piscar durante uma série de minutos. tento hipnotizar os peixes que tenho no aquário. coço as costas (sabe-me bem coçar as costas). amanhã, se estiver bom tempo, compro "A Bola" e leio-a, inteirinha, em minha casa.

divagação sobre aquela tua foto, david.

eu estava a andar pela rua, já nem me lembro bem qual, e de repente olho para cima e vejo uma nuvem a desfazer-se por entre o topo dos prédios. a benedita a puxar-me pela mão, para entrar no café, e eu a olhar lá para cima, acreditem ou não, mas estava mesmo uma nuvem a desfazer-se sobre a minha careca.
depois comecei a pensar se não estaria a delirar. é que a nuvem começava a ganhar a forma de diversos escudos, daqueles que têm cinco quinas dentro, e eram vários, um aqui em baixo (mais consistente), um ali em cima (já a apagar-se), e o céu daquela rua que não tinha mais nada que eu visse a não ser o café que só a benedita via, era uma enorme confusão de escudos, agora que eles se começavam a misturar.
olha para cima, benedita, vê-me bem aquilo.e ela com aquele seu jeito de se aperceber de todos os pormenores diz-me que é só uma antena de televisão, aparentemente quebrada.
eu olhei-a estupefacto. ela puxou-me de novo a mão a pedir-me para eu entrar no café. tem calma, benedita. estou com problemas de recepção.

nightwalk

... passar o dia inteiro fechado em casa. andar a subir e a descer escadas, a ligar e a desligar computadores, a olhar e a não olhar para a televisão. passar o dia em casa. experimentar todas as posições possíveis num sofá monolugar, finalmente experimentar o bloco de desenho comprado há dias, escrever, escrever, escrever (nada que se aproveite).ver todos os programas possíveis durante horas, sem nunca ver um princípio nem um fim.
... chegar então até ao mar, até bem perto do mar, sentir na face o vento salgado, que nos sopra contra nós mesmos, nos empurra, nos obriga a vermo-nos como não podemos deixar de nos ver. sentir todo aquele apelo do mar, como quem fecha os olhos e diz para si, eu sou marinheiro, eu quero ser marinheiro, e ter no mar todas as casas em que me fecho, ali mesmo, debaixo da lua. caminhar por ruas sempre mais vazias e perceber que a noite nos refresca em tudo.
só não consigo abandonar este stress que me atormenta, esta necessidade de tudo e de nada, esta ansiedade estúpida que me perturba. só não consigo abandonar-me a mim.

quarta-feira, agosto 20, 2003

escritores que eu conheço I

vejo-o sentado na mesa do café, as pernas esticadas para o corredor onde costumam passar os outros clientes, os braços muito levantados segurando um livro, o esquerdo, e um cigarro, o direito.os óculos escuros plantados na cara, chocantes, visto o café ter um ambiente escuro. as pessoas entram e pensam como é que ele poderá ler assim. em cima da mesa pousa um maço de cigarros com a aparência de ter sobrevivido (mas mal) a várias guerras, uma garrafa de super bock e um copo limpo. este escritor bebe pela garrafa.
à medida que me aproximo da mesa dele pressinto o seu olhar a espreitar por cima das lentes escuras. sento-me na mesa e peço um café. o escritor pousa o livro e fala-me de um filme que passou na tv. um filme que eu diria totalmente banal. ele fala do filme como se fosse o melhor filme do mundo, destacando pormenores deste ou daquele actor. pergunta-me se me quero embebedar. eu digo que estou bem assim, a beber café.
apercebo-me de que ele não dormiu. passou a noite toda a escrever qualquer coisa que não lhe agrada. nesta altura regozija-se não com o facto de ser escritor, mas com a ideia de parecer escritor.para ele o aspecto é importante. é assim que se conquistam as miúdas. sugere-me que apanhe uma bebedeira. eu sorrio. o escritor lê.

segunda-feira, agosto 18, 2003

preferir o silêncio

eu hoje preferi o silêncio, preferi ficar calado, quieto. acabei por ficar em casa, sem sair, a ver a minha barba crescer no espelho da sala. a televisão manteve-se ligada mas não vi nenhum programa. sei que lá fora estava sol e talvez alguém me tenha procurado no café onde costumo estar. talvez até alguém me tenha telefonado. o telemóvel manteve-se desligado, ajudante do meu silêncio, do meu isolamento.
e depois veio o pensar de que não gosto das pessoas. veio-me à ideia a conclusão de que não gosto mesmo nada de quase ninguém. penso que tenho a minha vida a desfazer-se. não tenho sono para dormir nem vontade de comer. emagreço diariamente e deixo acumular loiça por lavar na cozinha, e no quarto, na sala, em todo o lado.procuro por jornais antigos, quem sabe de anos passados. apetece-me reler as notícias de quando era feliz.
assusta-me entretanto o facto de ninguém me conhecer. se tocarem à porta, não vou atender.

domingo, agosto 17, 2003

gostava de lhe chamar...

gostava de lhe chamar um nome qualquer.mas também sei que nenhum nome me poderá satisfazer, como aliás tão poucas são as coisas que me satisfazem. olho-me assustado no retrovisor do carro. uso as viagens para pensar em mim.em mim por dentro, onde vocês não podem ver.olho-me assustado ao pensar que me sinto tão isolado de tudo, tão isolado de tanta gente que poderia estar perto. ao fim de alguns quilómetros começo a sentir que me guio pelo retrovisor, em lugar de olhar para a estrada que se oferece à minha frente.felizmente,ou considerando o inconsciente como um bom condutor, nada se me atravessa à frente, nenhum acidente provoco ou provoco-me.
gostava de lhe chamar um nome qualquer, um nome bonito, identificativo de algo grandiloquente, que pudesse impressionar as pessoas e, quem sabe, até pudesse me impressionar a mim. no entanto é-me completamente inacessível esse campo de palavras que significam uma enormidade de significados ao mesmo tempo.volto a lembrar-me de que procuro uma palavra que não há.
fecho os olhos.abro-os. revejo-me no retrovisor. há um carro vermelho atrás de mim, um tanto ou quanto impaciente para me ultrapassar, mas impedido pelo trânsito em sentido contrário.respiro fundo e abrando a velocidade. nada me importa mais do que eu mesmo.

sábado, agosto 16, 2003

being Nuno Ribeiro

é impossível não sentir a tentação de subir para cima de uma bicicleta e pedalar como pedalam os heróis depois de ver como o faz Nuno Ribeiro, um homem frágil na aparência e no trato, até há uns dias tão desconhecido como qualquer outro desconhecido que passa por nós na rua. vê-lo galgar estrada, montes acima, é para mim uma catárse, um renovado sinal de esperança. é como que reconhecer naquela cara magriça um sinal de um anjo que nos acorda a meio da noite para nos dizer que aquilo com que sonhamos é possível.
a sua ascensão tem todos os ingredientes para a constituição de um herói. o primeiro sinal foi dado há uma semana, na serra da estrela, e vê-lo, virgem, atingir o topo na frente de uma infinidade de pintinhas coloridas pela estrada não teria nada de mais especial do que reconhecer por ali um novo provável vencedor de etapas. mas com o decorrer da semana, Nuno Ribeiro, que continua a transmitir com o olhar um quase pânico pela condição sobre-humana que vai adquirindo, veio mostrar-nos como estávamos todos tão errados ao não termos reconhecido na chegada à torre, o sinal de uma nova era que começa. Nuno chegou para vencer não uma etapa, mas uma volta inteira. e agora, quando imaginamos uma bicicleta, todos os sonhos que íncluam o seu nome são possíveis.
para mim, que tanta resistência tenho ao reconhecimento de heróis, são homens como o Nuno que me fazem vacilar.

sexta-feira, agosto 15, 2003

Usar só depois de bem mexido

kundera e televisão. uma parte da tarde sentado no sofá, em frente à televisão, até adormecer. dormir exactamente no momento em que os ciclistas percorrem os últimos dois quilómetros da etapa da volta. acordar com tudo decidido, ver o acontecimento através das repetições que se repetem a uma constância insuportá¡vel. fazer um zapping regular entre os canais de música e os canais de desporto. tentar perceber o que acontece nos filmes e nos jogos que estão codificados. bocejar.
encontrar uma daquelas séries em que todos os protagonistas têm trinta anos e uma crise existencial.ao sair da casa de banho a protagonista diz que nunca fez amor. são as mulheres ideiais fazem amor. ela nunca fez. quanto muito pode dizer que "transou".
é um pouco aquela sensação de ligar uma ficha e encontrar a electricidade. perceber que, estejas onde estiveres, ainda há muito mais caminho lá para a frente. agora só te resta decidir se ainda queres lá chegar ou não.
mudo de canal de novo, endireito a almofada que me sustém as costas, bocejo, tento não pensar.nos primeiros minutos é fácil, devido ao choque da iluminação. mas depois é como uma torrente de pensamentos, sempre mais fortes e mais duros.
esta noite sou bem capaz de chorar.

leitura de kundera

o livro é a brincadeira e a frase é esta. "Percebi que não escaparia às minhas memórias; elas assaltavam-me".
deitado na cama, numa tarde de feriado, a ler. seguro o livro com uma mão e na outra guardo um pequeno lápis que uso para ir anotando as margens, sublinhando esta ou outras frases, ideias. tento entrar por dentro do esquema montado por kundera. homens e mulheres em luta com os seus passados, com os seus presentes, reforçando buscas de algo mais forte, algo de mais materializável, algo mais próximo da felicidade. enfim, eles talvez queiram amar. mas também há a possibilidade de, simplesmente, quererem viver alguma coisa que os faça sair da rotina.
são pessoas em busca de si. não por serem inexperientes, imaturos, jovens. mas exactamente por já não serem nada disso. por se terem visto viver, envelhecer, sem que as coisas ficassem resolvidas. harmoniosamente resolvidas.

quinta-feira, agosto 14, 2003

Dados Biográficos

este sou eu, sentado em frente ao computador. consumo noites a olhar para o écran vazio, pensando se estará alguém do lado de lá. este sou eu na minha fase criadora. em que, abandonado o papel, tento alinhar umas quantas ideias sem sentido e sem interpretação possível. no fundo, acho que me engano. acho que me forço a ser algo que não sou.o objectivo? ser social.
este aqui sou eu, a tentar sobreviver ao calor e à falta de palavras. a tentar manter os olhos abertos, mesmo quando quase todos insistem para que eu os feche. este aqui sou eu, sentado para a fotografia, que vai ser a fotografia do meu bilhete de identidade, e talvez a fotografia da carta condução, e talvez sobrando uma cópia, ou duas, eu ofereça a minha fotografia a uma rapariga, que a vai guardar dentro do diário dela, e daqui a uns anos vai voltar a descobri-la e vai lembrar-se de mim em pose de bilhete de identidade, sentado numa esplanada de um café qualquer, num dia de muito sol, a camisa suada e os olhos escondidos atrás de uns óculos escuros, e vai pensar que eu sou aquele rapaz, aquele que ela um dia teve vontade de beijar, mas ele não deixou.
certas noites, apetece-me apagar as luzes e fazer-me desaparecer por um chat holandês. ali ninguém me conhece, ninguém me fala. às vezes sabe bem não ser ninguém.
são coisas dessas que me põem calmo.

quarta-feira, agosto 13, 2003

do lado dela

mais uma vez o miguel não acertou com a hora do meu intervalo para café. o sacana ainda não percebeu que ter um intervalo entre as 10h e as 10h15 significa ter um quarto de hora para tomar café com ele, sempre que ele quiser. o parvalhão ainda não percebeu que a estes quinze minutos não dá para chegar atrasado, senão deixam de ser quinze minutos.
obrigou-me a ouvir o enésimo relato da discussão entre a Alexandra e o marido, as dores de costas da Helena, a pequena constipaçãozinha da Sãozinha.
boas colegas nem sempre são boas companhias para o café.
decidi esticar os quinze minutos só para que o Miguel não desse outra vez com a cara num café vazio. entretanto aparece-me à frente o Leonel Marques, o actor preferido do Miguel. fiquei sem saber bem o que lhe dizer, mas ao ver que ele trazia um livro com o Max Monteiro na capa, decidi falar-lhe do filme em que ele faz colecção de pintelhos. achei que ele ia gostar.
parecia que não estava muito bem disposto, mas acabou por se sentar na minha mesa. mesmo mal disposto, não deixa de ter um ar de conquistador-educado-com-o-casablanca. eu queria perguntar-lhe sobre o filme que eu sabia que ele andava a fazer, mas aquele ar de quem acha que me vai comer irritou-me.
estou à espera do meu namorado, pedi-te para te sentares para lhe fazer ciúmes. o gajo embasbacou. fingi que não o conhecia e falei-lhe de uma novela que eu tinha ouvido a Sãozinha a relatar antes do intervalo. 80% das minhas colegas são fixadas na novela das 22h que passa na SIC. o actor acendeu um cigarro e pareceu não se preocupar.
fodido.
quando o miguel entrou, o gajo fez o papel dele e foi-se embora. o miguel nem queria acreditar, tinha apertado a mão ao Leonel Marques, o Leonel Marques, estão a ver bem? ficou radiante com este meu esquema.
só me chateou o facto do actor ter saído do café tão contente.

do lado dele

ela chegou-se até mim e disse-me que eu devia começar a fazer colecção de pêlos púbicos, como o César Monteiro, num dos seus filmes da era João de Deus. com aquela primeira impressão achei melhor não lhe dar demasiada confiança. afinal, eu só estava ali para tomar café. se bem me lembro tinha entrado cheio de pressa, e não estava para ficar à conversa com alguém que me sugere uma coisa destas nos primeiros minutos de troca-palavras.[não era que me desagradasse, mas enfiar aquela história assim, sem mais nem menos, não me pareceu bem; talvez fosse o cigarro que me estava a cair mal.]
puxei de uma cadeira e sentei-me na mesa dela. estava cheia de chávenas de cafés vazias. apeteceu-me imaginá-la louca e depressiva, a enfiar cafés desde as oito da matina, mas afinal era farmacêutica e tinha ficado para trás do grupo de empregadas da farmácia que fica duas lojas abaixo naquela rua.a história dos pintelhos era só porque eu trazia um livro debaixo do braço com a imagem do J.C.Monteiro na capa.era uma intrujona, posso dizer isso.pareceu-lhe bem dar um ar de conhecimento. fez-me sentar para depois me dizer que estava à espera do namorado, mas queria que ele sentisse algum tipo de ciúmes por a ver ali sentada comigo.fiquei durante três segundos sem pensar. tanta merda na vida e agora esta gaja que eu não conheço decide usar-me para fazer ciúmes ao namorado.
puta que a pariu.
acendi um cigarro e fiquei a ouvi-la falar não sei bem do quê. quando chegou o namorado, sorri-lhe, apertei-lhe a mão e disse que tinha pressa, que não podia passar mais tempo sem dar notícias minhas ao Luciano, o meu agente.
quando saí do café, estava calmo, muito calmo.