lembrava-se ainda de um dia antigo, um dia em que saíra para o mar, triste e nu, como todos os outros dias. "fui pró mar, como ia todos os dias". lembrava-se também de várias outras coisas, do nascimento da filha, de um golo do Travassos, de uma rixa junto ao cais. "saltou um tipo com uma navalha". lembrava-se de muita coisa. sim, era o que ele dizia, horas antes de morrer.
a primeira vez que o vi, dizem, porque não me lembro, segurei-lhe o indicador com força e inaugurei um riso. ele chamou-me sacana e saiu para a cozinha, a acender um cigarro. sempre que ia a casa da filha, numa cidade longe do mar, gostava de se encostar à janela da cozinha, a fumar um cigarro. a mulher dizia que eram saudades do mar. ele, calado, via nas cores dos carros a mistura do arco-íris e das ondas. e, sei-o agora, nem um mínimo sentimento de saudade lhe tocava.
a sua vida foi sempre muito a mesma coisa. é estranho poder formular-se esta frase sobre a vida de um pescador. mas é verdade. aos nove anos começou a ir para o mar. não tardou muito a poder falar de dias antigos, no mar. tardou ainda menos para poder deixar de ter surpresas ou novidades. "no mar, acontece sempre tudo muito depressa". o primeiro susto, a primeira tempestade, a primeira morte. morreu aos setenta e oito anos, um mês depois da última vez que foi ao mar. demasiados anos depois da última novidade.
não há nada de aventuroso em ser-se pescador. "a maior emoção que me persegue é a pobreza", dizia ele. encontrei-o muitas vezes a fumar um cigarro. sentava-me ao seu lado, dava-lhe um beijo na face e ficava a vê-lo. ele parecia pouco importar-se com a minha presença. se é possível dizer-se algo sobre ele, dir-se-á, era calado. no entanto, tudo aquilo que ele me dizia continha algo muito importante para mim. não que me ensinasse. alertava-me.
no dia em que soube da sua morte, fui a casa da minha mãe, encostei-me à janela da cozinha e acendi um cigarro. quis perceber o que era estar ali. na minha cabeça repetia-se a voz dele, com as frases curtas que me sempre me despertaram. na minha cabeça os gestos dele, a voz dele. quando apaguei o cigarro, no parapeito da janela, senti-me pronto para o chorar. "é raro acontecer alguma coisa naquilo que vivemos todos os dias", dizia ele.
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terça-feira, julho 06, 2004
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