Amar é, ou ser ausente, dádiva de se estar calmo, lugar encontrado entre as pedras que ficaram dos meninos que passaram, corpos calcinados de uma ausência silenciosa e irreparável. Acordar tarde e as más horas, sair sem beber café, o cabelo mal penteado, os olhos meio fechados, alguém que resmunga dentro da casa de banho, um adeus até logo murmurado entre dentes e a casa estava vazia. Se nunca repararam nisto, eu digo-vos: ao sábado de manhã, ninguém conduz bem; sessão de soluços fora da auto-estrada. Quanto a mim, sigo na minha via. Na minha via. Tem piada. Estas coisas que dizemos sem pensar no resto do mundo. Repito: minha via minha via minha via. Afinal, tenho-a.
Procuro sempre outra forma de fazer a mesma estrada. Por defeito de imaginação, acho eu. Quantas maneiras existem para se chegar a Roma? E a Benfica? Procuro sempre outra estrada, outro caminho. Faço variantes dentro dos mesmos percursos. Como se houvesse um imprevisível medo de reencontrar alguém no mesmo caminho que nós. Volto à minha via. Para que seja só minha. Invento a fórmula para deixarem de existir caminhos habituais. Eu nunca regresso pelo mesmo caminho, eu nem sempre desço a pradaria. Acertaram. Eu também não sou o Lucky Luke.
Não digo nada à vizinha que desconheço. Tenho por hábito não falar a desconhecidos, como também tenho o mesmo hábito para os conhecidos. Puxo o elevador, olho-me no espelho enquanto troco de óculos. Não sorris quando abres a porta e me vês. Não tens uma palavra bonita. Eu dou um passo atrás, fico a ouvir. Se estivesses mais atenta, pronto estás a fugir. Afinal estás mais preocupada em não te aproximar. Não entro, não quero voltar a entrar. Desço de novo, venho ler os editais da junta. Desço de novo, escondo-me debaixo da árvore do jardim. Penso coisas que não são transmissíveis. Engulo em seco. Tu apareces e desapareces. Arrancamos no carro. Tu estás a ralhar. E eu prefiro não ouvir. Afinal, não tenho nenhuma vontade de falar.
Eu gosto de desaparecer, gosto mesmo de desaparecer. E nós os dois só nos damos bem quando não pensamos em mais nada. Quando é possível ficarmos sem pensar em nada. Isso acontece muito poucas vezes. E nunca quando estamos longe um do outro. Logo, nós quase nunca nos damos bem. Está escrito. Apesar disso, eu gosto de ti. Mas também isso não nos leva mais longe do que onde estamos. Sim, provavelmente, desgraçadamente, é aqui que vamos ficar. E se procuras uma explicação para o caso, eu digo-te. Porque sim. Porque sim. Simplesmente porque sim. Logo eu, que gosto tanto de explicar o inexplicável.
E depois volto àquilo de que fugi ao acordar. Volto ao mesmo suplício. Ao mesmo igual. Sempre igual. Volto e faço um esforço do caraças para não rebentar ali, na boca de cena, em frente de todo o público. Finjo. Fujo de novo. Fujo de novo. Fujo de novo. É o ficar calado ou falar de uma coisa completamente diferente. Mas depois não dá, não se aguenta. Como ao pedir um café receber uma imperial. Como se nos apagassem constantemente a luz quando queremos ler. Fico a pensar. Fico a pensar. Estou a olhar para o nada. Estou a olhar para o nada. Reparo, quando dou uma volta sobre mim próprio, que me observam. Saio sem dizer nada. Quando atravesso a rua, já estou a chorar.
Conto as palavras no fim do texto, como se me tentasse assegurar de uma produção mínima exigível. Conto as palavras no fim do texto, sempre sem chegar a nenhuma conclusão. Procuro discos antigos no armário. Volto ao termo. Música triste. Música triste. Re-volto ao termo. Música para chorar. Música para chorar. Soa bem, não soa. Ando a escrever mal, murmuro. Ando a escrever mal. E peço a alguém que traga um letreiro, onde se possa ler a palavra fim.
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sábado, julho 03, 2004
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