Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

segunda-feira, maio 31, 2004

intermezzo lúdico sobre a importância da poesia

enquanto sinto o calor a descer-me pela face de barba por fazer, tremem-me os braços e as pernas com o nervosismo habitual de estar sempre com a sensação de viver sobre o trapézio. fiz uma cabana dentro do meu próprio quarto, e estou agora rodeado de livros e papéis onde o excesso de letras me faz piscar os olhos, de bom míope que sou. lembro-me agora que ontem, ao entrar no elevador, os meus olhos estavam inchados. páro e tento perceber onde é que isto tem uma ligação com a poesia.

talvez seja isso que me preocupe, ou, talvez seja isso que me ocupe o espírito nesta tarde. o que é, o que origina a poesia. como se faz? procuro, a maior parte das vezes nos próprios poetas, a resposta a isto. pois de cada vez que leio algo de teórico sobre o assunto, acabo por sempre me ir encontrar no lado errado das questões que me coloco. então, pelo meio do trabalho que me dizem ir fazer de mim um homem, olho e desejo os livros de poesia. páro e tento, de novo, perceber o que é que isto tem a ver com a poesia. e, entretanto, sinto-me a avançar em alguma direcção.

era de facto impensável que eu pudesse discorrer assim sobre qualquer assunto, eu que me tento esconder tantas e tantas vezes por detrás de histórias que invento, para desviar a atenção do olhar que me é estranho. sou como aquelas personagens dos filmes cómicos que se encontram no meio da rua a apontar para o vazio quando elas próprias são o objecto da perseguição de um magote de gente. quase que para me defender, se é que isso faz algum sentido, esqueço-me sempre daquilo que escrevi nos últimos dias. e depois é como se me estivessem a falar de algo que eu deconheço quando alguém menciona um texto meu. páro e reflicto na importância que a poesia possa ter para tudo isto.

domingo, maio 30, 2004

a prenda

sou uma menina
muito pequenina
não sei fazer nada
sem comer marmelada

Adriana Crespo in O Divertimento de A.



estávamos sentados em frente à televisão. era de noite, acho eu, ou então já era muito muito tarde, depois da hora de jantar. em cima da mesa da sala, um monte de flores espalhadas, dentro de plásticos rasgados e de cartas de amor esquecidas. não, não eram minhas, eram do anterior inquilino da residência. era de noite, muito muito noite, e tu de pijama a olhares para os meus dedos dos pés. puxaste-me pela mão e chupaste-me um dedo. eu sabia o significado desse gesto, sim, eu sabia. mas ainda assim, fiquei quieto a olhar para a televisão.

no outro momento, era de manhã e havia bolachas caídas pelo chão da casa de banho, misturadas com pó de arroz e pés descalços. eu olhava a minha barba a crescer no espelho e tu, sentada na sanita, estalavas os dedos como se arrancasses a cabeça a uma galinha. chamaste-me ao teu lado e puxaste-me pelos boxers. seguraste-me o pénis com as tuas mãos e chupaste-o de um só fôlego. engoli em seco, como se engole no deserto. e procurei a minha lámina de barbear no armário, mesmo por cima da sanita. são horas de irmos comprar o pão, não são?

e depois talvez não fosse nada disso, ou talvez o pequeno almoço em cima da mesa da cozinha e a televisão ligada na sic notícias a dar as mesmas notícias da noite passada. e depois havia pão e vinho sobre a mesa, os pijamas arrumados a um canto, prontos a serem lavados. e depois havia também um vizinho que nunca aparecia mas que nós sabíamos que vivia lá em casa. e depois, ao passar os olhos pelo frigorífico um pedaço de marmelada esquecido, talvez fosse de outra pessoa. sou uma menina pequenina.

sábado, maio 29, 2004

oh captain, my captain (mais uma coisa ilegível)

ando pilas doidas, dizia o capitão gancho enquanto pousava o chapéu em cima da mesa do baile, desde aquela noite, meus caros, desde aquela noite, e o patrão que se chegava ao nosso lado, a olhar desconfiado, pôs uma garrafa de vinho barato e um prato de chouriço assado para que nos servissemos, enquanto o capitão gancho, pilas doidas, pilas doidas, onde é que já se viu, agora mijo sempre para o lado.

ainda que nos fizesse alguma impressão ouvi-lo todas as semanas com histórias cada vez mais sem jeito nenhum, não deixávamos de aparecer para que ele nos falasse fosse do que fosse. ainda me lembro muito bem daquele outro dia em que o capitão nos apareceu todo sujo de um líquido viscoso sobre a casaca de flanela vermelha e gritou, mal pôs um pé no recinto, meus amigos, a moby dick, está toda podre por dentro.

agora são onze da noite e eu tenho algumas dúvidas sobre o futuro desta nossa religião, mascarada que está de pão e vinho sem qualidades. Robert Musil acena-nos do outro lado da arena e sai acompanhado de um touro-tipo-os-homens-não-valem-nada. quando a lady sinatra sobe ao palco já poucos de nós estão sóbrios para a ouvir cantar. ainda assim, alguns corpos se balançam de um lado para o outro, como que perdidos. o capitão segura uma caneca no gancho enquanto balbucia, pilas doidas, camaradas, pilas doidas.

sexta-feira, maio 28, 2004

caranguejo pelas paredes

abrir muitos os olhos e deixar ficar o tempo todo para trás, sim, eu diria que isso é que é a vida a vir beijar-nos a boca, mesmo que seja já de madrugada e todos os bares estiverem fechados para obras. eram depois das três da manhã, disso lembro-me eu, e também sei que não ouvi nada do que me tinhas para dizer. está lá? está lá? sim, tudo bem, mas o meu telemóvel estava desligado, dá para acreditar? se chamou, não me chamou a mim.

faz-me impressão ficar assim deitado de barriga para baixo na cama, começam-me a doer os ombros e o pescoço e, passados uns minutos, dói-me o corpo todo. mesmo que haja um gajo gordo no restaurante a dizer-me que inventa umas frases muito boas e agora já não se lembra de nenhuma. eu de barriga para baixo é que não fico. e depois tenho a mania de olhar para o relógio, de arderem os olhos e de cuspir para dentro de um caixote de lixo. não sei bem o que se passava, mas acho que ouvi dizer que aquilo ainda ia afectar o bailarino. depois era de manhã e havia bares de strip. só em promessas.

porque eu andava há tanto tanto tempo para ler aquela carta escrita aos peixinhos e não sabia como o fazer. acho que tinha medo de descobrir as coisas que eu já sabia que existiam. e assim fazia-me de parvo, sempre a olhar para o lado quando vinham carros de frente. e mesmo que me chamassem da outra esquina da rua, eu avançada impune, com a espada a tiracolo, como o sargento silva ( ou seria o chefe silva cozinheiro?). o pior de tudo, diria ele, ainda são as hemorróidas. é verdade, é verdade. e a quando a porta se fecha, aparece o polícia sinaleiro.

quarta-feira, maio 26, 2004

notas para o bailarino

eu não estava lá, estava muito mais longe, sentado num consultório demasiado quente, escondido atrás de uma planta verde enorme, com vista refractada para umas meias de vidro adolescentes que faziam cara de poucos amigos enquanto guardavam o livro na mala para me enviarem mensagens maldosas pelo telemóvel. portanto, como já afirmei, eu não estava lá, estava muito mais longe. no entanto, isso não me impediu de saber, quase em primeira mão, da birra que ele fez quando estava no palco. sim, eu soube de tudo.

não vou agora revelar como soube do acontecimento, a meu ver não é isso o mais importante. que ele passou ao fundo da rua, sem me ver, que ele passou em frente a uma esplanada, sem me ver, que ele entrou e saiu de uma papelaria, que ele entrou e saiu de um café, que se fazia acompanhar por uma mulher baixa e de roupas largas, não me parece sequer conveniente dizer como eu soube de tudo isso. quanto á cena do palco, ainda me restam algumas dúvidas, algumas coisas que eu gostaria de saber. embora também isso não tarde. o que eu posso dizer é que alguém, talvez uma aluna, talvez uma colega, disse que ele era um pachá, aquele gajo é um pachá, disse ela. e não o vi mais nesse dia.

quem sou eu? bem, isso também seria demais revelar. o que eu posso dizer é que sou alguém que sabe muita coisa, mesmo de acontecimentos onde não estou presente. não se aflijam, não sou um espião nem coisa parecida. sou apenas alguém que sabe. no entanto, é mais fácil encontrarem-me longe, em consultórios quentes, com visão refractada para meias de vidro adolescentes. aquele atrás das plantas verdes altas, sou eu.

segunda-feira, maio 24, 2004

podes falar sempre que quiseres

Bernardo, não saias hoje de casa, fica, dizia ela, pedindo-lhe que não fosse, esta semana, à reunião. Impossível, é impossível não ir. Bernardo divide-se entre o quarto e a sala em busca de papéis, de jornais, de documentos que vai colocando dentro da pasta, desordenadamente. Não saias hoje de casa, a sério, olha a tua saúde. Bernardo vê-se no espelho uma última vez. É impossível não ir. Mesmo que não lhe apeteça, mesmo que saiba que não vai mudar nada. Bernardo veste o sobretudo, embrulha o cachecol à volta do pescoço e pega no guarda-chuva. Até logo, não esperes por mim esta noite, devo chegar tarde. A porta abre. A porta fecha.
Trinta e oito graus de febre, o nariz entupido, a garganta bastante irritada, os olhos chorosos e vermelhos. Bernardo está doente. Tenta alargar os passos ao máximo. Chove imenso esta noite, tem chovido assim durante todo o Inverno. Desde há quinze dias, então, tem sido o cúmulo. E hoje parece que chove ainda mais. Nos terrenos mais próximos do rio já se registam algumas inundações. Produções de vários agricultores estão já perdidas este ano. Mais uma chatice. Mais protestos para organizar. Mais pedidos de subsídios para as famílias atingidas pela desgraça. Mais uma conferência de imprensa para expor tudo isto. Bernardo já quase que corre com a chuva a correr atrás dele, sempre mais forte. A tosse a aumentar, Bernardo sente dificuldades em respirar. Chega finalmente à sede. Fecha o chapéu-de-chuva e larga-o junto aos outros que já chegaram. Tosse.
Está frio, muito frio, na sala de reuniões. Talvez seja devido à febre ou só por uma sensação de isolamento. Os outros parecem não se importar com o frio. Para eles, só a chuva se constitui como verdadeiro problema. Alguns acabaram por ficar em casa. Consideram que não vale a pena sair de casa numa noite de Inverno para ir a uma reunião. Por paradoxal que isso possa parecer, esses, os que não vêm, ainda acreditam que toda a situação possa ser alterada. Bernardo senta-se à mesa e já não acredita. Bernardo, engripado e friorento, contra a chuva e contra a vontade da mulher, vem à reunião para debater as questões. Mas pouco o faz já acreditar.
Não é por má-fé, mas Bernardo não acredita que o partido o esteja a ouvir. As suas dúvidas crescem quando vê a direcção tomar decisões sem ter em conta as opiniões dos que, como ele, trabalham há anos nas organizações de base. Pior que tudo, não acredita que o partido acredite nele. Sempre que dá novas sugestões ou coloca questões diferentes, ouve da boca dos responsáveis um falamos nisso depois, ou a prioridade não é essa ou, o mais estranho ainda, a população não iria entender. No fundo, quando não acreditamos que acreditem em nós, desfaz-se a corrente da confiança, quebra-se o elo entre a Ideia e o homem. Não há Ideia que aguente quando o homem não acredita.
Na reunião, alguns parecem deixar-se adormecer. Enquanto Bernardo fala, há quem saia para fumar. Bernardo não acredita mas continua a falar, continua a criticar, continua a propor. Os que acreditam foram lá fora fumar um cigarro. As intervenções desfiam-se mornamente. A população não iria perceber se votássemos assim, Bernardo. Alguns parecem deixar-se adormecer. Fica tudo na mesma, fica sempre tudo na mesma. Há uma voz que diz a Bernardo, repetindo incessantemente, que tudo ficará sempre, para sempre, na mesma. Bernardo volta a pedir a palavra e fala.
A Ideia já não é tão forte como era. Há quem continue a acreditar sem pôr reservas mas a maior parte tem sérias dúvidas e já não acredita. Os que acreditam continuam a utilizar o método. Continuam, como dizia Kundera, a acreditar que se pode chegar ao paraíso. Os que já não acreditam queriam largar o método. Seguros de que não há possibilidade de se chegar ao paraíso, consideram que é agora mais importante que se tente mudar alguma coisa, por pequena que possa parecer. Bernardo não acredita. Quer dizer ali, na reunião, que não acredita mas deixa para depois. O assumir da separação é sempre um processo longo e doloroso. Dentro dele, ele sabe-o, a Ideia já não produz os mesmo efeitos, a Ideia já não é a mesma. Os que acreditam olham para ele como se de uma simples opinião não compartilhada pela maioria se tratasse. Podes falar sempre que quiseres.
A reunião acaba bastante tarde. A chuva não parou, aliás, chove ainda mais. Bernardo volta a pé para casa, o passo curto, muito lento. As suas ideias reviram-se por entre gotas de água que caem. No chapéu-de-chuva criam-se batidas intensas, desordenadas, como as suas ideias. A tosse não parou, aumentou. Bernardo não acredita e aqueles que acreditam já não o vêem, já não o conhecem. Quando ele pede a palavra já quase não o ouvem. Quando ele telefona já não atendem. Na próxima reunião, ele já não vai sair de casa. Será devido à chuva ou a uma visita de um parente ou a outra razão qualquer. Depois a porta vai estar fechada e Bernardo já não irá às conferências de imprensa. Vai ficar tudo na mesma. Como se os olhos de Bernardo já nem estivessem por ali.

domingo, maio 23, 2004

pensamento para levar a algum lado

nem todas as pessoas precisam de ser felizes, bonitas, cuidadas, abertas, inteligentes, nem todas as pessoas precisam de fazer as coisas certas, esperadas, surpreendentes, nem todas as pessoas precisam de ser felizes, não. algumas pessoas passam mesmo muito bem, quando não têm nada disso.

censurar a palavra de que ele não gostou

faço um elenco de coisas que não posso dizer agora. procuro um papel e uma caneta e começo a escrever, no momento a seguir a ter-me sentado a olhar para o jardim pela janela. olha, lá fora há um monte de putos a correr pela relva e a saltar por cima dos escorregas e baloiços. gostava de lhes ouvir os gritinhos, agora que estou aqui parado. mas tudo o que eu oiço é o barulho dos automóveis a passar. começo a escrever mas, não sei porquê, risco cada palavra que me vem à ideia. primeiro não percebo o pânico, mas rapidamente tento elaborar uma tese que explique a coisa. talvez seja porque nunca nenhum dos meus papéis fique sem ser lido. tenho que tomar atenção aos meus biógrafos.

olho a minha letra no papel. gostava de te a poder mostrar. não te consigo explicar estas coisas pelo telefone. é como se o meu estado de espírito se alterasse momento a momento, não em pequenas nuances, mas de uma forma dramática e cruel. acho que é por isso que me é tão fácil chorar. ou não, fácil não é. mas é rápido, percebes? e acabo sempre por pensar que choro pelas razões erradas. depois, depois disso sinto-me cansado, quase morto. o meu corpo transforma-se num pequeno farrapo, deixo de ouvir, de conseguir de falar. deito-me e apago a luz. já não sou eu. sim, é dramático o choro. e o que me faz chorar com mais medo são os sorrisos.

olho de novo a janela, acho que vai chover. tenho três papéis amarrotados no colo e começo a sentir alguma fome. vejo pessoas a passear. penso que um dia gostaria de vestir uma daquelas camisas velhas, como as dos pescadores, prendê-las bem numas calças de tecido quente e sair à rua com uns sapatos de sola. depois ia pelas ruas de calçada, como se fizesse sapateado. nesse dia estaria especialmente penteado e levaria um chapéu com o qual iria cumprimentar todas as senhoras. e sei que nenhum homem ficaria sem uma palavra, um aceno, um aperto de mão.nesse dia, preocupar-me-ia só com as coisas acessórias, não levaria ao pensamento nada que me fosse essencial. descobri hoje, junto a esta janela, do que são feitos os fins-de-semana.

sexta-feira, maio 21, 2004

igual

ou então sou só eu que tenho a mania de pensar imensas vezes na mesma coisa, sem conseguir fazer nada para alterar o modo como as coisas vão, em fila indiana, para o muro das complicações. e depois, fico a andar à chuva, como se isso purificasse, como se isso me fizesse sentir melhor com alguma coisa. sei sempre o que não sei, apetece-me sempre saber mais alguma coisa.

ou então sou só eu que tenho a mania de dizer que as coisas vão acontecer, mesmo antes delas acontecerem mesmo, ponho-me a prever chuva e viagens e resultados de jogos de futebol, digo que adivinho, que acerto, mas não consigo sair do mesmo erro de sempre, do era capaz de ter sido, do sei lá, agora não me chateiem. é isto que eu provo e posso dizer que é amargo. na língua.

ou então sou só eu que não consigo ver bem coom as coisas se fazem e tenho a mania de pensar de que há uma maneira muito mais certa que todas as outras para o fazer. ponho-me a fazer planos e a tomar decisões, ponho-me aqui e ali, mesmo que não saia nunca do mesmo lado, seja isso um sofá ou um ponto de vista. ou então sou só eu que sou igual a toda a gente.

quinta-feira, maio 20, 2004

E 15

a morte por afogamento é rápida e silenciosa. eu ontem vi um pequeno lago, um pequeno amontoado de pedras que sustinham alguma água, água insuficiente para cobrir o meu tornozelo. páro e penso: podia tentar matar a minha unha grande do pé direito. só para provar um pedacinho dela. no entanto, olho os cigarros dos outros, mesmo sem os fumar. e quando volto a casa, a minha casa está perdida, como sempre esteve.

a morte por afogamento é rápida e silenciosa. não sei porque não me sai esta frase da cabeça. pensei em procurar canetas e papéis, pensei em escrever-te frases completas e com sentido. consinto que quando as tento pôr cá fora elas saem tortas. e depois, mesmo que eu não esteja desse lado de lá, a forma como eu o vejo, percebo que fica muita coisa por perceber. ainda assim, como num espectáculo de magia, tu tiras coelhos da cartola. e eu vou a sorrir para casa.

a morte por afogamento é rápida e silenciosa. contabilizo os meus choros, contabilizo as minhas bebedeiras. sim, sim, julgo que já teria líquido suficiente para deixar de respirar. no entanto, ainda aqui estou. e, apesar de estranho, apesar de tão parecido com a mentira, sinto-me vivo. sinto-me cheio de vontade de agarrar as nuvens. dizem que é delas que os sonhos são feitos. ainda assim, passo a minha mão pela testa e sinto o suor. como este texto, que não podia acabar bem.

terça-feira, maio 18, 2004

Itinerário

“É um erro a cidade alguma vez a
Cantaste?”
Gastão Cruz, Os Nomes desses corpos

#
em ti te bastas
luz infinita
no trabalho dos espelhos

#
a ninguém será dado
o abraço quente apetecido

#
és longa avenida
carregando nos braços verdes
o castelo como olhar

#
procuro um caminho
para os teus lábios
beijar

#
diria teu peito
calçada
na sua sombra
sorrio

#
como tu
passo a passo
me degrado


#
há uma mulher velha
visão amarela
sentada na soleira
jornal antigo
com uma beata nos dedos

#
dizem que se chamava
Mary
como as actrizes dos filmes
e que batia em mil homens
sem as armas dos cowboys

#
Merry Mary Maria
Maria Cachucha


#
aqui até as fontes
guardam memórias
já não serve aos meus lábios
esta água


#
tenho os pés bêbedos
como enxadas envelhecidas
no solo gasto de um jardim


#
pois deveria ser mais nobre
o trabalho da enxada
escavar o mundo
talvez
ou a vida

#
passo a passo
consigo encontrar
o sabor da pobreza
que o império nos deixou

#
subo devagar
não quero acordar o passado

#
à minha esquerda
toda a novidade
pelas escarpas
a fazer lembrar
um deserto esquecido
pelos dedos sujos
de um comerciante invisível

#
à minha direita
as escadinhas importadas da infância
olhares na casa da avó
a perfeição assustadora de um lego grande
caiada entre barras de azul


#
uma última sombra
um último sinal
de ausência de sede

#
pressinto toda a festa
agora deserto
onde antes movimento
e homens mulheres brilho
agora pó
onde toda a riqueza desta cidade
abandono

#
o doce marulhar das folhas secas
ao adivinhar-se uma cidade calada
pela promessa de chuva

#
centro-me
e à minha volta
como roda dentada
recorto o olhar pelos desígnios
imaginados nos homens
lá em baixo
acolhem-me todos os poemas
neste itinerário
desfeitos
como uma cidade
prostrada às suas ruínas

este poema foi vencedor o concurso Arte Jovem 2004, uma organização da Câmara Municipal de Torres Vedras.

segunda-feira, maio 17, 2004

no tricks, no sweets!

eu como maçãs, elaborando o desejo com referências bíblicas doentias. tu, com as pernas brancas esticadas sobre a carpete da sala fria, sorris-me docemente. eu sei que tu sabes o que nos apetece a ambos. mas, ainda assim, finjo-me ausente, sem reagir aos pequenos estímulos que me envias ao passear com a mão pelo teu ventre. poucas roupagens te restam já. uma camisola, muito curta, as cuecas brancas. eu deitado no sofá, a fingir que olho a televisão. não tarda, perderás a paciência comigo.

o meu corpo encontra-se a uma temperatura regular, apesar dos desvarios da metereologia de trazer por casa desta primavera. lá fora, algumas vozes cantam sardinhas assadas no terraço ou vitórias do benfica. na televisão, de imagem granulada, relembra-se a mesma notícia dos últimos quinze dias. eu como maçãs, trazendo para esta casa a incomensurável presença do senhor. havias de me ter censurado a referência, se te tivesses apercebido. já te estavas a masturbar quando eu ainda ia tirar os sapatos.

sim, saí de casa sem avisar. tu ficaste aos gritos, insultando-me, caída pelo chão da sala. cá fora está mais calor, uma noite abafada, como a de um verão intenso ou a de uma chuvada que se aproxima. passeio pelas ruas abandonadas desta praia urbanizada e alguns cães ladram-me demasiado perto das orelhas. abro um ou dois botões da camisa, sinto-me suado. na minha cabeça pouco mais que um vazio, uma ausência de pensamentos, sério. só um pequeno resto do caroço da maçã preso entre dentes me incomoda. não sei para onde vou.

terça-feira, maio 11, 2004

é só mais uma noite

essa insustentável leveza de se ter andado a tarde toda em pé de um lado para o outro e agora finalmente poder esticar os pés sobre o sofá grande da sala enquanto se vai desapertando lentamente o cinto das calças. sorriso. brincar devagar com os dedos todos do pé direito. depois, o esquerdo. esticar os braços, redescobrir as pequenas dores pelas costas. desligar, finalmente, o telemóvel. e fechar os olhos.

abrir muito a boca, num bocejo prolongado pelo zapping da televisão. gemer, aos soluços, durante três publicidades engraçadas. parar num canal de música quando aparecem umas mamas a saltar. espreitar um canal francês, para dar uma de intelectual.e depois coçar o corpo todo, da cabeça ao púbis, largar um alegre peidinho e gritar de enfado. aaaaahhhhrrrgrrggg.

acordar, umas horas mais tarde, com mais dores nas costas e o cansaço ao dobro como numa máquina de calcular. ter na cabeça todas as notícias incessantemente repetidas durante a noite. perceber, enfim, que já se perdeu a oportunidade de ter dormido umas boas horas na nossa caminha, que é tão confortável. maldizer o sofá e a tentação que este exerce. tentar levantar o corpo do torpor mas perceber que as pernas estão dormentes. e as dores no pescoço, as dores no pescoço. olhar para as horas, e mesmo antes de ver os minutos, perceber que tudo está estragado.

quarta-feira, maio 05, 2004

xana schulman goes to heaven

Deixa-me ficar sentada na sala branca da minha vida, a sala branca, a minha vida, sentada na sala onde me encontro, na sala onde luto por me encontrar, nas paredes de tecido, brancas, no chão liso, branco, no mundo, enfim, branco, e onde tudo o que eu oiço é silêncio, onde tudo o que me oferecem é uma visita guiada à cantina, viagem bidiária à cantina, onde a comida é neutra como os comprimidos de vitaminas, onde a água é água e só serve para me vitaminar um pouco mais, um pouco mais de esperança química para suportar o silêncio, esse silêncio, onde eu me deixo ficar, sentada, a imaginar, ou será que me lembro, de um mundo lá fora, um mundo lá de fora onde talvez ainda exista luz natural, onde talvez ainda exista ar natural, onde talvez ainda exista uma pessoa diferente, onde talvez ainda reste um sítio para comer que não seja a cantina com comida neutra, onde talvez ainda exista uma sala que não seja branca e talvez ainda sobre algum lugar que não esteja envolvido pelo silêncio, sim, disso lembro-me perfeitamente, lá fora, lembro que em mim tudo era ruído, lá fora, lembro que em mim tudo era outra pessoa qualquer, lá fora, lembro, afinal lembro, não é imaginação, do lá fora onde havia silêncio e sei que cá dentro não há lugar para a imaginação porque o que eu tenho é uma sala branca, uma cantina bidiária, a comida neutra, a água e as vitaminas e o silêncio, todo esse silêncio, que eu nunca encontrei nesses lugares onde fui à procura de silêncio, aquelas praias do sul de Espanha, aquelas vinhas de Bordéus, a praça de Nôtre-Dame a meio da noite, o circo romano em pleno dia, os Alpes suíços, os violinos de Viena, o Reno a furar a Hungria, o que resta de sonho de Europa na Ucrânia, o que já não resta da Praça Vermelha, o comboio fantasma da Sibéria, as águas frias até ao Japão, as águas quentes até à Austrália, o Pacífico por pacificar, o deserto americano, os barcos cheios de sonhos de estudantes madeirenses, e todas as ruas, todas as travessas, todos os becos de Lisboa, todos os desconhecidos e todos os amigos, todas as vidas e todas as mortes, silêncio, tudo o que eu me lembro de ter vivido sem silêncio, e acordar um dia sentada, deixem-me estar, nesta sala branca, a minha vida, e perceber que para além da viagem bidiária à cantina, para além da comida neutra, da água, das vitaminas, da água, das vitaminas, não há outro lugar onde eu procure, não há outro lugar onde eu encontre, não há outro lugar onde eu procure porque não há outro lugar onde eu possa encontrar, este silêncio, este infinito e sepulcral silêncio, onde eu fico sentada, deixem-me estar.

Plano de Evacuação II

Esta tarde olho para a janela da sala e apetece-me procurar um número de telefone na minha agenda, um número de telefone qualquer, seja homem seja mulher, apetece-me abrir a agenda sem pensar, marcar um número sem pensar e dizer, vem fazer amor comigo, como se eu fosse a verdadeira paixão dessa pessoa, como se eu fosse a beleza eterna, o amor de uma vida, vem fazer amor comigo, assim dito ao telefone, parece-me tão bonito, aqui sentada a olhar pela janela da sala, o céu chumbado a querer verter águas e eu tão distraída, vem fazer amor comigo, a imaginar um número de telefone qualquer, tirado da minha agenda sem pensar, marcado no telefone sem pensar, eu aqui tão distraída, tão triste que estou tão feliz com a vida, só para poder dizer, é tão bonito, ao telefone, vem fazer amor comigo, ter o prazer de soletrar, vem... fazer... amor... comigo... à outra pessoa que atende o telefone sem saber que eu aqui tão distraída marquei aquele número sem pensar só para lhe dizer, vem fazer amor comigo.
Hoje vesti só uma camisa por cima das cuecas e passeio-me assim despida com os pés descalços sobre a tijoleira da cozinha, assim tão distraída, olho a janela e lá fora, uma ave plana no vento, não dá às asas porque o vento não a deixa mais do que planar, eu aqui tão distraída, a pousar os pés, um a um, na tijoleira fria do vento, a ave lá fora não dá às asas, eu aqui sem planar, só com o gozo de tocar o chão, assim tão frio, a pensar como era bom ouvir uns sapatos a ecoar no corredor e ao virar a cara para o lugar onde costuma estar a porta, perceber o cheiro de um corpo nu e antes de ver fosse quem fosse, só ouvir uma voz desconhecida, vem fazer amor comigo, só pelo gozo de a ouvir, vem fazer amor comigo, e é tão brutalmente doce estar assim tão pouco despida, os pés gelados no chão da cozinha, respirar a nudez de quem nos surpreende, vem fazer amor comigo, a ave lá fora a planar no chumbo, o céu da cor do vento, águas vertidas ou por verter e aquele cheiro de suor nocturno, aquele cheiro de sexo quando nos dizem, vem fazer amor comigo, eu só de camisa sobre as cuecas, os pés a planar sobre o frio da cozinha, a deixar-me levar pelos braços de um telefone, um homem ou uma mulher, eu sei lá, uma pessoa qualquer, eu sem pensar, estando ali tão distraída, a imaginar, vem fazer amor comigo, sozinha a imaginar, os pés gelados pelo chão, tão calma que sinto encontrar, assim tão distraída, o caminho até ao armário do corredor, sem pensar, abrindo a gaveta que ameaça planar e pousando a mão sobre a agenda.

plano de evacuação I

1. Gaspar a dizer-me que sim ao meu ouvido, eu com aquela cara de quem quer parecer sereno para toda a gente mas se sente a rebentar por dentro, aquela cara em quem ninguém acredita se eu insisto em dizer que está tudo bem e parece que mais quero dizer que está tudo mal, os meus olhos abertos, vermelhos e eu ali quase a parecer chorar, a parecer quase chorar, eu ali, sentada na cadeira, o Gaspar a dizer-me que sim ao meu ouvido e toda a gente a olhar para mim e a disfarçar, toda a gente a passar os olhos pelos meus olhos a rebentar, toda a gente a fingir que não me vê mas a olhar-me e a disfarçar, disfarçam tão mal, coitados, o Gaspar a dizer sim, sim, ao meu ouvido, sim, sim, sim, ao meu ouvido e toda a gente a olhar sem sequer imaginar o porquê dos meus olhos vermelhos, aos gritos, de sangue, tão altos e só me olham a mim e à minha cara de, talvez, sofrimento, talvez, loucura, só a minha cara, só a minha cara é que eles olham, nem vêem o Gaspar, sim, o Gaspar a dizer-me ao ouvido, sim, e a parecer que nem sequer ali está, sim, nem sequer tem corpo, sim, nem alma, sim, será que sou só eu que o imagino, sim, será mesmo que mais ninguém o vê?
Procuro as minhas mãos, ainda mais confusa, procuro as minhas mãos, estou tão nervosa, credo, procuro as minhas mãos, não as vejo, só sinto que tremem, tremem muito, procuro as minhas mãos porque me parece que elas já não existem, meu deus, parece-me que elas já não existem como mãos, só sinto que tremem, meu deus, tremem muito, procuro as minhas mãos, elas não existem como mãos, saem da sua construção material para onde as não reconheço, os meus olhos à procura, as minhas mãos, sussurro como se as chamasse, os meus olhos à procura e nada, os meus olhos como fechados, sussurro, as minhas mãos, só há uma mesa de café, um cinzeiro, um cigarro ainda fumarento, as minhas mãos, as minhas mãos, um cigarro ainda fumarento, a chávena vazia, o pacote do açúcar amarrotado, os meus olhos à procura, não há mais ninguém à minha volta, sou só eu que digo, as minhas mãos, sou só eu que grito, as minhas mãos, e sem as conseguir encontrar, sem as conseguir perceber, tão fora de si, tão fora de mim elas estão, as minhas mãos, grito desesperada, as minhas mãos, e os olhos das pessoas voltam a focar-me, como se eu estivesse só, como se eu estivesse louca e o Gaspar volta a dizer-me ao ouvido, sim.

segunda-feira, maio 03, 2004

predisposições inquietantes

ou então sou eu que estou calado, meio fechado no meu canto, agarrado a um copo de cerveja barata, daquelas importadas de sítios onde as pessoas não se embebedam tantas vezes quanto nós, e a apagar um cigarro nos meus lábios, como se hoje fosse dia de anos e no final do lume, eu enterrasse a ponta debaixo dos meus dedos e toda a gente da sala batesse palmas e acendessem a luz. talvez depois pudessemos comer qualquer coisa. tremoços, talvez.

ligo o leitor de cd's e oiço música antiga, daquela que ouviam os gajos que andavam nos ácidos e dançavam pelo meio da estrada a ver flores voadoras e raparigas de anéis diamantinos a passearem pelas nuvens. bato o pé ao ritmo da música, como se fosse uma criança no pátio da escola e, em frente à rapariga mais bonita das redondezas, eu batesse o pé também e lhe pedisse um beijo e ela mo desse. talvez depois pudessemos sair da escola e casar. ter filhos, talvez.

pois mesmo que eu te diga que não é nada de pessoal, tu não vais acreditar. prefiro encher a minha mochila e fingir que não se passa nada enquanto me voltam as dormências no cérebro e as dores pelo corpo e a impaciência de uma barata perante comidinha fresca num armário recôndito. e depois sigo caminho como se fosse uma grande viagem que se empreendesse por um país distante, onde me recebessem com flores no pescoço e me pusessem uma foto no jornal e até a tvi lá estivesse para dizer que eu tinha chegado bem e tinha sido principescamente recebido pelos nativos. como o pedro álvares cabral lá na terra que depois foi dele. água de côco e uma palmeira, talvez.

domingo, maio 02, 2004

Ricardo atirava às nuvens

Ricardo atira às nuvens. Como se atirasse a matar, Ricardo atira às nuvens.
Todas as manhãs, logo bem cedo, quando a primeira luz do dia surge, Ricardo sai da cama, dirige-se ao armário, retira de lá a caçadeira e vem para a rua. Do seu quintal, Ricardo atira às nuvens. Não que não goste delas ou que fomente dentro de si alguma espécie de argumento contra a existência das mesmas. Também não é por ódio ou por vingança, sequer o gosto de atirar por atirar o move. Todos os dias, Ricardo atira às nuvens. Como quem colecciona isqueiros ou faz jogging ou lê um livro. Pela manhã, Ricardo atira às nuvens.
É um sonho que o faz atirar. Um dia, com os seus tiros, Ricardo pretende desenhar a mais bela nuvem que jamais existiu em todo o universo. Uma nuvem que obrigará todas as pessoas a parar para a observar durante alguns segundos. Como a muitos outros, em diversas formas de arte, a Ricardo não interessa a consequência fantástica de conseguir parar o mundo com a sua obra, mas a sua obra em si. Ricardo sonha desenhar uma nuvem. Desenhar uma nuvem com os seus tiros.
Vive numa pequena casa no meio do nada. Para além dos limites do seu quintal, só algumas dezenas de árvores divididas a meio por uma pequena e esburacada estrada que Ricardo utiliza para conduzir o seu carro até à cidade em dias de compras. O facto de viver sozinho no meio de tanta solidão não o deprime nem o assusta. Aliás, é para ele motivo de grande alegria. A inexistência de vizinhança é até uma vantagem pois acaba por o libertar completamente para o exercício da sua arte. Ricardo pensa que a melhor forma para não sermos incomodados é, justamente, não termos quem incomodar. Além disso, gosta de ocupar a maior parte do seu tempo livre em actividades de contemplação. Com o Bach certo, é capaz de ficar horas, um dia inteiro mesmo, a observar o movimento imóvel de uma flor selvagem. Em dias de vento, acompanha-se de Paganini e soltam-se-lhe os cabelos em viagens de olhos fechados pelas searas da sua imaginação.
Ricardo não tem amigos e, pelo menos, não se lembra mesmo de algum dia ter tido algum. É incapaz de reconhecer as feições de qualquer companheiro de escola que possa ter tido e nem nenhum nome lhe vem à ideia quando se sente tentado a pensar nisso. A bem da verdade, Ricardo raramente ou nunca sente essa tentação. Também não lhe ocorre nenhuma conversa que tenha tido nem recentemente nem em nenhum outro momento da sua vida. Tem uma vaga ideia de trocar algumas palavras de circunstância com a dona [?], a senhora da mercearia da qual também não se consegue lembrar o nome.
Ricardo não sabe nada, ou quase nada, do que se passa no mundo. Não tem televisão, não ouve rádio, não compra jornais. Não lhe interessa a guerra como não lhe interessa a paz. Não se comove com o fim das ideologias como não se emociona com a existência delas. Não festeja campeonatos como nunca lamenta as derrotas. Nenhum fenómeno actual o toca. Possui, no entanto, uma vasta colecção de música herdada do seu pai por omissão testamentária aquando da morte deste. Tal como o pai, também a mãe de Ricardo morreu, esse dia tem ele bem presente na sua memória. Não que nutrisse por ela especial carinho ou que os unisse especial ligação. Chegou a casa ao fim de uma tarde e não encontrou sinal da mãe. Ao procurar, finalmente, no armazém onde se acumulavam uma série de objectos desnecessários agregados pelo pai, viu a sua mãe suspensa um metro acima do chão, com um laço de corda a ornar-lhe o pescoço. Ricardo ficou uma semana sem comer e sem sair do quarto. Lembra-se que um advogado da família tratou de todas as diligências para que ele pudesse ficar a viver sozinho.
Todas as manhãs, perante o primeiro sinal de sol, Ricardo levanta-se da cama, tira a caçadeira do armário e sai à rua. A arte comanda a sua vida e, no seu caso, a arte que lhe pertence é desenhar nuvens. Ricardo atira às nuvens, como se atirasse a matar.
Duas das salas da casa de Ricardo têm as paredes cobertas de livros. Numa delas guarda enciclopédias, dicionários e livros de imagens. Na outra, dividida que está em duas secções, tem a literatura e a ciência. Ricardo gosta de ler e inspira-se recorrentemente nos livros para imaginar o desenho que depois passa a executar nas suas nuvens. O que por vezes causa em Ricardo um sentimento de estranheza é que a cada livro que lê surge-lhe uma ideia de nuvem diferente e assim praticamente a cada semana que passa corresponde uma ideia diferente de nuvem. Logo novas exigências nascem, na direcção do tiro, na execução da obra.
A par da vertente imaginativa da sua arte, Ricardo desenvolve interessantes teorias sobre os fenómenos atmosféricos e a sua conjugação com esta forma de intervenção na natureza. O tempo cinzento e carregado com nuvens espessas e baixas permite-lhe grandes superfícies de intervenção e obriga-o a sessões longas e determinadas. Os dias de céu pouco nublado apresentam-lhe pedacinhos sensíveis de nuvens em que, por vezes, um só tiro basta para limar arestas ou quebrar o conceptualismo. Nos dias limpos de verão, Ricardo não pode trabalhar. Nos dias de chuva parece-lhe inútil criar, pois nesses dias ninguém olha para cima, apenas se oferecem faces de olhos fechados ao prazer da água natural.
Ricardo atira às nuvens. Como se atirasse, decidido, a matar, Ricardo atira às nuvens.