estou rodeado de quadros de motivos bíblico-manga-psicadélicos e oiço uma musiquinha muito irritante a sair das paredes. o ambiente é um bocado escuro, talvez por lá fora ser dia de chuva, sim, lembro-me que lá fora o ar está com aquele cheiro de quem vai chover não tarda muito. talvez tenha sido por isso que entrei aqui. agora já nem me lembro bem. tenho essa música a invadir-me o cérebro e do meu lado direito parece que estão expostos milhares de panos do pó, da loiça, do caraças. sinto uma tontura, dou uns passos para a frente, outros para trás. quando dou por mim tenho um chinês com cara de pânico a dar-me palmadinhas na barba.
enquanto me levam na ambulância desperto um pouco e oiço a conversa dos bombeiros. que ontem à noite, no BAR 31, estava um grande grupo de miúdas completamente bebedas a fazer uma festa qualquer de natal. que um deles tinha lá ido com uns amigos, só para beber uma imperialzita antes de ir para casa mas que tinha ficado a espreitar o entusiasmo das gajas. que ao fim de umas tantas meteu conversa com uma das miúdas, uma que estava a dançar perto do balcão onde ele se tinha encostado. que era assim e assado e frito. que tinha uma saia e uma blusa assim e coiso e tal. pela descrição parece que reconheço a imagem. que saiu com ela e que foram parar a um quarto da pensão onde, pelos vistos, ele leva todas as gajas que engata. que a gaja fartou-se de gritar e lhe deu a volta uma dez vezes. que a gaja fazia broches maravilhosos. que se chamava Ofélia. não há assim tantas Ofélias com 19 anos, comenta. a minha filha. desmaio.
o médico entra-me no quarto com um cigarro apagado pendurado nos lábios. olha para a minha ficha, franze o sobrolho, e ao levantar os olhos para mim exclama, Serafim! Esforço-me por reconhecer o gajo mas nada me vem à ideia. Era um dos putos da minha rua. Passava o tempo a dar-me pontapés no cu sempre que eu vinha da escola. eu era assim meio atado-atarantado, um rapazito calmo, quieto, ninguém dava por mim em lado nenhum, a não ser na minha rua onde todos os putos gostavam de me dar pontapés no cu ou empurrar-me contra a parede. pela nossa amizade, o gajo acende o cigarro e senta-se na cadeira ao lado da cama. que eu devia levar uma vida mais calma, tentar não me enervar. eu permaneço calado, custa-me a falar com a boca presa do lado esquerdo. o gajo fala fala fala. quando dou por ele já está a confessar-me duas amantes e cinco mil euros de dívidas. oiço barulho no corredor, e quando volto a olhar para a porta, a Ofélia, com aquela cara de santinha cheia de olheiras a dizer, papá.eu respiro fundo e (não consigo acenar um não com a cabeça).
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sábado, dezembro 20, 2003
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