gostava ainda de saber o que te passou pela cabeça quando decidiste sair assim de casa. não sei, podias ter deixado um recado qualquer, uma pista. não. saíste, como se fosse sempre preciso sair a correr dos sítios onde não estão as coisas que tu queres, e eu fiquei esquecido, nem sequer lá dentro, fiquei esquecido, como ficam os papéis que esvoaçam pela janela. olha, nem sei se fiquei triste. fiquei mais comigo, o que talvez vá dar ao mesmo.
o que eu sei, ou talvez pense só que sei, é que enquanto tu te pões a andar por esses sítios mais escuros onde eu não te vejo nem te toco, eu continuo cá fora, a fazer o meu ninho com pauzinhos e folhas que vou achando pela rua. não é mais confortável do que qualquer outra coisa. é uma boa maneira de me esconder. tu sabes. o que me parece estranho é que as pessoas que ainda não me conhecem, me consigam agora passar a conhecer. dizem, tu foges. dizem, tu escondes. eu aceno devagar com a cabeça enquanto meto mais um bromalex na boca.
não, não, senhor doutor, não há nada de que eu me queixe. olhe-me bem nos olhos e diga-me o que vê. diga lá, será que eu consigo mostrar alguma coisa? passo a minha língua pelos dentes e sei que os tenho todos, pelo menos todos aqueles que me fazem falta para morder. chovem convites para me levarem a foder, diz ela. eu sorrio para dentro e tento fechar as orelhas. sei lá, é mais calmo quando há silêncio. mas, ainda assim, eu aceno com a cabeça devagar, o que faz a cama ranger. tal e qual como quando éramos pequenos e fazíamos frases complicadas com a imaginação.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
terça-feira, junho 01, 2004
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