agora, que já ninguém me fala, decidi abrir a janela e respirar fundo, sem pensar em me atirar. conseguir que ninguém nos fale é como encontrar a chave do silêncio. apesar de ainda haver carros, conversas de café, simpatias desnecessárias em balcões de retrosarias. silêncio. ninguém para nos acordar a meio da noite, só porque existe um lado de lá e um lado de cá. ninguém para nos felicitar por termos aguentado mais um dia vivos. agora.
essa coisa de ver a janela como uma porta de saída para, digamos, a não-existência, é uma história antiga. começou aos quinze ou dezasseis anos, já nem me lembro bem. era como uma prova de bala, daquelas em que um gajo dá um tiro noutro para ver se ele aguenta. nós, e o nós eram uns cinco ou seis gajos que não gostavam de fumar charros quando eram adolescentes, tínhamos esta mania de prever o dia em que íamos conseguir voar da janela de um terceiro andar ou outro superior. a boa notícia é que nunca ninguém o fez. a má é que todos nós sofremos agora dos efeitos colaterais.
mas agora, já ninguém fala comigo. deixaram de achar importante a minha existência. poderei ter sido eu a iniciar o processo, começando por pôr em dúvida todas as boas intenções que alguém poderia ter a meu respeito. e terá sido uma espécie de círculo vicioso que levou toda a gente a deixar de me falar. não que isso me perturbe por aí além. passei uns dias a chorar, para encaixar a coisa, e depois, bem, depois decidi por a cabeça do lado de fora da janela. apanhei ar. soube-me bem.
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quarta-feira, junho 16, 2004
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