Esperava o elevador no vão da escada, no nono andar. As luzes apagadas, o Miguel encostado à porta, a sorrir, e a sua silhueta a enterrar-me no escuro... Eu sei que não queria, eu sei que tinha prometido não voltar cá. Eu sei que ele não merece, eu sei que ele só me estragou a vida. Eu sei disso tudo... Mas ele telefonou... ele escreveu-me...telefonou outra vez... Só um café, só uma conversa. E eu adoro-o, continuo a adorá-lo, mesmo depois de tudo o que ele me fez, mesmo depois de tudo o que ele me disse. As traições, as mentiras. sim, lembro-me de tudo. Mas o desejo, a vontade, os olhos dele, a boca dele... Há sempre um mas... E eu vim...
Posso ter feito mal. Talvez esteja arrependida, ainda não sei, ainda não passou tempo suficiente para ver bem como se alastrará esta noite, que mancha ficará no meu espírito. Fomos tomar um café, um café normal, um café de amigos. Como sempre, de inicio, as palavras não saem, não têm vida... mas a pouco e pouco retornámos aquelas longas conversas de noites inteiras. O café fechou (sim, ficámos até ao café fechar) e a conversa continuava. Vem lá a casa, disse ele, tomamos mais um copo, fumamos mais um cigarro, ainda temos do que falar. E eu fui, satisfeita por me deixar assim ser enganada. Eu sabia bem que aquilo não teria senão um fim, o mesmo fim que o Miguel e todos os outros homens com quem andei planeiam sempre. Entrei no carro e fomos.
Parecia quase um filme... tudo estava preparado (desconfio agora que só fomos aquele café escondido porque fecha mais cedo do que os outros)... Música ambiente, as luzes, o whisky escolhido já em cima da mesa da sala, os dois copos, o gelo já preparado no frigorífico... Tinha a sala arrumada... O Miguel tinha a sala arrumada!! Confirmei os seus planos, ele queria levar-me para a cama. E eu continuava a falar do escritório, dos problemas com as minhas colegas, da doença do meu pai, do estado da nação... Via o seu olhar desesperado que confirmava as horas no relógio do vídeo... Duas e meia da manhã... Decidi então ceder... A frase preparada... A pergunta que acciona finalmente o caminho inevitável para o leito... Perguntei-lhe, E os amores, como vão... O Miguel fez um sorriso feliz para dentro e um olhar triste para fora. Dramatizou a sua solidão, encenou a dificuldade de encontrar alguém que o satisfizesse, há mais de dois meses que nada ( os homens, quando falam com mulheres, nunca fazem amor há mais de dois meses).
Ás três e quarenta e sete fumávamos um cigarro na varanda, a noite estava quente, havia um sabor doce na noite de primavera. Ele pensava que me tinha enganado e eu pensava que o tinha enganado a ele. Estávamos aparentemente felizes.... Está na hora de voltar a casa, disse-lhe eu, antes de um último beijo.
O elevador chegou finalmente ao nono andar. Até à próxima, disse ele... Telefona, desejei eu, sabendo já que ele nunca mais o iria fazer. Ao entrar no elevador vi a minha cara no espelho... Sorri... Lembrei-me de ti, Cecília, de como me tinhas avisado, desde a primeira vez, que o Miguel não prestava... Talvez me venha a arrepender... Mas hoje não vou chorar, não o vou desejar, não o vou querer... Hoje ganhei... E ele nunca mais vai telefonar...
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terça-feira, junho 29, 2004
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