assinava sempre o nome com dupla consoante, era um costume que lhe vinha da adolescência em que passava longas tardes na casa da família a ouvir os infindáveis relatos do seu avô. dizia-se uma pessoa de família, acostumado que estava a respeitar os mais velhos e os nomes como pai, mãe, tio. ainda que o encontrasse muitas vezes na pequena loja onde ambos comprávamos botões de punho, não mais que um cordial acenar de cabeça nos ligava. éramos simples conhecidos.
não sei quando comecei a desenvolver este interesse na observação das pessoas, muito menos a data em que considerei este homem alguém mais interessante que os outros para observar. penso muitas vezes se não terá sido uma circunstância aleatória, como o tamanho das patilhas ou o jeito de pousar o chapéu no pequeno balcão da loja. posso até afirmar que, nos primeiros meses, nada de produtivo terei avistado nele. mesmo nada. no caderno onde registo as observações só tenho pequenas notas como, avistei-o na loja esta manhã, à hora do almoço passou por mim e acenou, estava sentado no café quando voltei a casa. pequenas coisas.
hoje olho-o, e na forma como repousa as mãos nos braços do meu sofá, encontro algum daquele brilho baço que ilumina a face dos santos nas igrejas antigas. um copo de whisky caído, aos seus pés, criou uma pequena poça alcoólica. o cabelo mantém-se impecavelmente penteado, apesar dos olhos muito abertos, da língua caída fora da boca, cheia de espuma muito branca. morte por envenenamento, hão-de dizer. pois sim, como se não se pudesse morrer por outras razões. eu diria antes um amor desmesurado, uma loucura de um homem sensível. anoto no meu caderno as últimas observações.
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segunda-feira, junho 07, 2004
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