chega o autocarro à paragem quando estou a apagar o cigarro na beira do passeio. tu já te foste embora há um bocado. fecho o livro sem acabar de ler o poema que me ocupava e procuro nos bolsos do casaco a carteira. certamente não a perdi, embora seja isso que eu pense de cada vez que ponho as mãos nos bolsos. como num pânico constante. retiro o passe e mostro-o ao condutor. tenho sempre o cuidado de desejar boa tarde ao homem. não sei bem porquê. talvez seja por ter consciência de que pode ser ele quem me vai matar.
recosto-me no lugar da janela e fico a olhar para os pombos a passear sobre a poluição deixada pelos autocarros na paragem. num dos bancos está sentada uma rapariga que conta os trocos com uma mão e mexe, nervosamente, no cabelo com a outra. tem um ar magriço, abandonado. a pele está marcada por muitas outras noites em que só o cabelo a impediu de se apertar o pescoço. conta os trocos convulsivamente, pois não tem moedas que justifiquem estar há tanto tempo a contá-las. olho para ela e penso que não terá frio esta noite. nunca tem frio quem já gelou.
sabes, o que eu penso sempre, sempre sempre sempre, é que estou fora do meu lugar. mesmo aqui, neste autocarro, rodeado por pessoas que eu não conheço, penso que não pertenço aqui. a viagem segue pelos altos e baixos da estrada, a rádio vai ligada passando músicas de que eu não gosto, por momento páro a olhar para o rabo de cavalo da mulher que vai uns seis lugares à minha frente, depois olho o forro dos bancos, o pé do homem que vai sentado ao meu lado, e o que penso, o que eu penso sempre, é que não pertenço a este lugar onde estou, não pertenço. no entanto, isso não me causa a menor perturbação.
quando chego à minha rua, saio do autocarro e surpreendo-me por não estar frio. aperto o cachecol à volta do meu pescoço e penso que não está frio. vejo pessoas a andarem muito mais depressa do que eu, em direcção a sítios que eu não conheço. oiço vozes a gritarem para telefones, a pedir ajuda, a resolver recados. há um carro que passa muito devagar mesmo ao meu lado mas não consigo descortinar quem o guia. sabes, tenho sempre a sensação de que está alguém a olhar para mim, alguém que me conhece e que está a ver, em directo, naquele momento, sem intermediários, todas as coisas que eu faço. quando fecho a porta do quarto é porque ainda sei o que é dormir descansado.
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quinta-feira, janeiro 08, 2004
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