ela olha-me de soslaio, como se preferisse não me ter visto no café, como se fosse melhor fingir ignorar-me ou ter vindo cá a outra hora qualquer. vai dando passos cada vez mais lentos enquanto se aproxima da minha mesa, onde fumo uma cigarrilha com olhar superior, propositadamente estudado para esta ocasião. acho que isso a enerva, porque começa a sorrir, sem conseguir disfarçar o olhar assustado. aproxima-se de mim e beija-me nos lábios. senta-se. e faz a pergunta: ainda gostas de mim?
eu mando uma enorme bola de fumo para cima da mesa, espalhando-se este por cima do café, do jornal e dos livros que tinha desarrumados entre as migalhas de um bolo e os pacotes de açucar vazios. olhei-a com um olhos paternalistas, como se não estivesse a perceber nada da conversa. "que raio de ideia, claro que gosto de ti", menti-lhe. ela sorriu de novo, ainda mais nervosa. já leste o jornal de hoje, perguntou. eu continuei a fumar como se não a estivesse a ouvir. ela falava cada vez mais baixinho.
abriu-me o jornal na página de opinião onde, curiosamente, estava um artigo meu que mal dizia uma peça de teatro apresentada na última semana. a peça de teatro que ela estava a encenar. a peça de teatro que ela dizia que era a melhor coisa que tinha feito na vida inteira. eu, simplesmente, escrevi o pior que pude sobre ela. porque aquilo era mesmo mau. porque não me apetecia ser bonzinho só porque a andava a foder. disse a verdade. odiei a peça. mas ainda gosto dela. sou capaz de a continuar a foder. embora desvalorize totalmente quem faz coisas de merda quando tem oportunidade de apresentar uma boa obra. dei mais um bafo na cigarrilha e sorri-lhe. ela levantou-se e disse-me adeus. eu desejei-lhe boa sorte.
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segunda-feira, janeiro 19, 2004
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