Ainda que a protecção civil nos avise da tempestade que vem aí, insisto em caminhar vagarosamente pelas ruas de uma cidade que, assim, em dias de escola, me custa a reconhecer, por tanto gostar de caminhar, nas noites de nada, pelas ruas vazias que componho com passos de interdito prazer. Desci ainda há pouco do vagar de estar embrulhado em mantas(mantras?) e lençóis de um azul bebé capaz de fazer envergonhar o mais macho latino dos recém-nascidos no hospital distrital. Sentado num arrevesado banco do café, oiço na renascença ( período áureo da pintura neoclássica) o porta-voz dos bombeiros sapadores a fazer o relato exacto daquilo que a directora dos serviços de protecção civil acabara de lhe comunicar via telefone vermelho( afinal ainda existe!).
Vem aí uma tempestade dos diabos e eu preocupo-me em chegar mais devagar à passadeira do que o condutor de um toyota yaris descontrolado que se encontra ainda a quinhentos metros da minha existência na beira do passeio. Enquanto paro, para poder pensar, revejo-me naqueles idílicos dias de inverno em que na realidade chove e faz frio como nos verdadeiros e idílicos dias de inverno em que é quase natal e nós estamos fechados em casa com cinquenta graus de febre. O toyota yaris atropela uma poça de água que só por obra do divino ( Senhor! Senhor!) não me atinge as calças acabadas de passar a ferro. Sigo engomado pela avenida e sinto o sol que se encosta nos vidros dos edifícios a ferir-me a vista e a tentar fazer de mim um borgeano antes de tempo.
Contra todas as previsões que fui capaz de recolher nas estações de rádio locais e nacionais hoje faz sol. E a protecção civil aproveita para nos avisar de que, sim, a verdadeira, a real, tempestade, chuva frio vento tudo junto, vem aí. Acendo um cigarro e olho para o sorriso das meninas ( todas têm mais de dezasseis anos) que saem da escola e vão apanhar o autocarro para a casa delas. Entretenho-me assim nestes dias enquanto não fico irremediavelmente deprimido para o resto da vida e me fecho em casa ao lado de dez garrafas de vinho e um papel do médico a dizer que agora, sim, agora já posso ser maluco á vontade. São duas caixas de prozac, Sra. Farmacêutica.
A verdade é que na última semana apanhei umas quinze molhas, o que me levou a chegar atrasado e demolhado a outras tantas combinações com amigas, amigos, familiares, presos políticos, sardas, bancos de jardim, beatas esquecidas e um cinzeiro verde e amarelo que falava mandarim. Ao cabo destas aventuras fui obrigado a riscar do meu caderno de conhecimentos várias referências incontornáveis da literatura actual. Ao mesmo tempo perdi uma boa oportunidade de fazer amor com um cinzeiro, desiderato que perseguia há várias centenas de décadas. Hoje sou um homem mais constipado do que antes.
Ao passar em frente do comércio de origem asiática da minha rua levantou-se-me a questão de comprar um guarda-chuvas que me proteja de futuras tempestades, mas o sol cega-me a vista e o pensamento. Estamos em pleno inverno e nada me incomoda mais do que a chata da minha vizinha a enganar-se constantemente na porta e a acordar-me aos murros na dita e a gritar, ó Joaquim com que puta te fechaste aí dentro! Certamente continuará a chover pelo inverno fora e a minha vizinha não vai ter nenhum acréscimo de inteligência ( nem de ordenado) com o novo orçamento de estado. Resta-me voltar ao monte de mantras ( mantas?) que deixei sobre o sofá da sala e pôr o termómetro em alegre convívio com o meu sovaco direito.
Hoje faz sol.
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