Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

terça-feira, setembro 02, 2003

[amo-te]

sento-me perto da janela, a olhar para o céu que hoje está inquietantemente azul. estou muito enconstado à parede. vejo que pássaros cruzam o topo do prédio de vários em vários minutos. tento ouvi-los. nem um som. o teu corpo continua sobre a cama. não sei o que fazer. acordei num dos cantos do quarto, encolhido, envolto de sangue e suor. cheiras mal, cada vez pior. deixo que o sol entre pelo quarto dentro, pretendo secar todo o sangue que ficou espalhado pelos lençóis, pelos móveis, pelo chão. como tinha o cabelo todo pastoso, decidi pegar na máquina e rapar partes do meu crânio. agora parece que transporto um simulacro de montes e vales em cima de mim. encontrei uma caixa com pinturas dentro da tua mala. pintei os olhos com um lápis preto, cobri as pontas dos dedos com verniz e risquei o meu peito com o que restou do teu batôn. fiz uns riscos assim como se fosse um guerreiro. sentei-me, então, perto da janela. a olhar para o céu. espero que alguém nos procure. nós íamos sempre ao café de manhã, antes de seguirmos cada um para o nosso emprego. de certeza que o senhor do café, o senhor não me lembro o nome, sentiu a nossa falta. um café, uma meia de leite e duas torradas para o casalinho. ele diz isso todos os dias. hoje talvez não o tenha dito. mas não vai ser ele que virá à nossa procura. pensará que estamos de férias. eu nunca lhe dirijo a palavra. é perfeitamente normal pensar que estamos de férias. e depois vai dizer àquela vaca que se senta sempre na mesa ao lado da porta que nós fomos de férias. e ela vai dizer que não. pois se eles têm o carro na garagem. mas nós podíamos ter ido com amigos ou de avião ou doutra maneira qualquer, sua puta! mas não. se assim fosse eu tinha-os visto. eu estou sempre à janela, vais estar tu a dizer ao gajo do café. e depois alguém nos virá tocar à porta e eu vou estar sentado junto à janela a olhar para o céu. alguém vai dar pela nossa falta. na escola, no emprego, alguém. alguém vai telefonar, tocar à porta. e eu sentado, sem atender. ninguém. alguém vai passar pelo café. se nos viram? talvez estejam de férias, mas a senhora, não, a puta da vaca que se senta na mesa ali da frente diz que não os viu sair de casa. e depois vai ser o teu cheiro. cheira mal que não se pode. deixaram o frígorífico a descongelar, de certeza. têm a carne toda a apodrecer. a carninha toda estragada, coitados. um dia ou dois para encontrarem alguém que nos conheça bem. alguém que se importe connosco. alguém que talvez abra a porta. têm a carne toda a apodrecer. pois temos.

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