Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

sábado, outubro 30, 2004

cadeira

desta cadeira áquela são doze passos, doze passos que eu ainda não aprendi. é preciso saber vigiar a nossa vontade, dizem. eu finjo não ouvir e olho a cadeira do lado de lá, penso, do lado de lá da minha vida. junto de cada cadeira há sempre uma mesa, prevejo, incerto. não tenho jeito para generalizações universais sobre os objectos, tenho consciência disso, disso e dos doze passos, daqui ali, daqui a já ali, poderiam dizer.

em muitas outras ficções entraram cadeiras. pode-se dizer que as cadeiras fazem parte da história da literatura. sim, é aceitável. embora não fosse aceitável imaginar, num qualquer livro que pretendesse explicar essa história às criancinhas, um capítulo intitulado "Cadeiras". ainda assim, arrisco, em muitas outras ficções entraram cadeiras. embora já tenha as minhas reservas em pensar que poemas aceitem de bom grado a presença de cadeiras. toda a poesia do mundo está nestes doze passos, daqui ali.

quantas vezes eu pensei e repensei o que te dizer, no instante em que me fosse possível, fazer os doze passos do amor. enumerei-os à exaustão dentro do meu pensamento, o lugar onde sempre me perco. quantas vezes eu pensei, é agora, já ali. e quantas vezes interpretei na tua face a reprovação do meu avanço, mesmo quando ainda nem tinhas dado pela minha presença. quantas vezes eu olhei para um livro, a disfarçar. e fiz, das quatro pernas das cadeiras, base de um poema, doze passos.

quinta-feira, outubro 28, 2004

última visita

I
antes de tudo, era o livro esquecido pelo pai sobre a mesa da sala. a curiosidade calada de o abrir, sentir-lhe o cheiro. a surpresa de só lhe ver letras, não desenhos. antes de tudo, a descoberta. as perguntas que sempre fazemos sem que ninguém nos responda.

II
à procura incessante do crescer, deram-lhe um nome. pegou na folha em branco e sussurraram-lhe, agora és escritor. com o orgulho da primeira barba no queixo, passeou-se pelos corredores da escola, exibindo as letras. sim, cresceu. e a primeira vez que o leram, na sua cabeça explodiram vergonhas e estremeções que nunca soubera dizer.

III
depois a gente habitua-se. misturam-se os cafés com as palavras, os passeios a pé em dias de chuva e as entradas em cinemas onde estamos sós. depois a gente habitua-se, ninguém à nossa volta, toda a nossa boca cheia de um silêncio nos ouvidos. depois a gente habitua-se, o nosso nome no jornal, na montra de uma livraria. e quando a gente, finalmente, se habitua, o terror imenso de tudo aquilo falhar.

IV
um dia acorda-se todo suado, mesmo que faça um gelo no quarto. outro dia sem se conseguir dormir. o nosso nome em todo o lado, aos gritos, dentro da nossa cabeça. um dia acorda-se assim. e pensamos muito baixinho: há um escritor em mim que morreu.

V
pouco adiantam os telefonemas que nos dizem a nossa falta. de nada servem as cartas que vão ficar sem resposta. só assim se consegue dormir, voltar a sair à rua. mata-se o medo por antecipação, escorrida a tinta sobre todas as folhas em branco da casa, escondidas as canetas. nem a lista de compras se volta a fazer. o medo, ali, morto na nossa prateleira.

VI
desce agora obscuro pelas escadas do seu próprio prédio. os vizinhos dão-lhe os bons dias com um aceno e ele compra o pão normalizado entre uma bica e o jornal da manhã. uma criança sorri-lhe enquanto a mãe a puxa para a escola. o céu é azul, sim, porque quando se sai da ficção o mundo retoma as suas cores. sobe agora as escadas do seu próprio prédio. em casa, cheira-lhe a paz.

VII
e ao sétimo dia, descansou.

quarta-feira, outubro 27, 2004

não há chão para os meus olhos

eu pensava na cor que tinham as tuas janelas quando chegavas perto delas. sim, eu era o rapaz que passava os dias do outro lado da rua, a olhar o céu que era a possibilidade de te ver chegar. fizesse chuva, vento ou frio, eu ficava lá, à espera. nunca soube ao certo o que pensarias de mim, embora me pareça garantido que te tivesses apercebido do eu sempre ali. quando deixei de te ver, pensava em ti.

comprei alguns livros para me conhecer melhor. livros de auto-conhecimento, filosofia barata. sentei-me em bancos de jardim a folheá-los. procurei as palavras que me explicassem, para poder pousar os dedos nelas. os livros cheiravam a novo, como nada na minha vida. pensava, ainda, nos teus olhos, os teus olhos de terceiro andar. comprei os livros na esperança de, conhecendo-me por dentro, pudesse trazer os teus olhos até mim. de cá de dentro.

passam anos e anos sobre as coisas que amamos na infância. sim, é disso que se trata. um dia, tu passas por mim na rua, encontramos pessoas que pensávamos até já nem existirem. mas ainda tu. quando os livros ficaram esquecidos por onde não sei, o cheiro de novo esquecido, apagado. eu mais crescido, o brilho dos teus olhos que se desvanecera. não, não fiquei contente. mas lembrei-me de coisas que eu pensava já não existirem na infância.

sexta-feira, outubro 22, 2004

tem que ser bom

mas tem de ser bom, ouviste, tem de ser bom, porque senão, é pá, não vale a pena, tem que ser bom, tem que ser melhor, diferente, no mínimo, diferente, pensar que, agora vai tudo correr bem e podermos sorrir muito no fim, os dois deitados num sofá manhoso com as tuas amigas a falar alto na cozinha, coisas que nenhum de nós percebemos muito bem, tem de ser bom, estás a ouvir, tem de ser bom, porque senão não vale a pena.

temos que ser os dois, temos que ser capazes, porque já estamos demasiado velhos para podermos achar que vamos ter tempo o resto da vida, para provar o que fôr que quisermos provar enquanto formos novos, porque sim, já temos cabelos brancos, porque sim, já nos caem os cabelos, sim, já temos dores que cheguem, e não gostamos nada de ficar parados à espera que venha a chuva, assim, temos que ser os dois, tem que ser bom.

e depois acenderemos cigarros e ouviremos vizinhas velhas a gritar às janelas, escreveremos poemas como se bebe vinho, dançaremos sem nos levantar do chão, ficaremos a olhar os olhos um do outro e a pensar, tem que ser bom, as tuas amigas a passearem à nossa volta como uma procissão de velas, a cera a demarcar um círculo à nossa volta, aliás, tem que ser bom, só pode mesmo ser bom.

o eterno problema dos carteiros

o eterno problema dos carteiros é não saberem onde guardamos o nosso amor. olham os envelopes com os bigodes espantados e acariciam-nos, violentamente, com carimbos de regresso à solidão. estão fechados em casas de janelas vermelhas e saem à rua de farda. pisam o chão com a mesma decisão de um exército perdido na batalha anterior. e tocam, tocam muito, às campaínhas de quem não está.

o eterno problema dos carteiros são os sacos sem fundo onde a nossa letra se torna irreconhecível de tão escuro. os selos abraçam-se e fogem para o paraíso dos selos, as letras dançam ao sabor do esquecimento e não se sabe nunca onde está o remetente e o destinatário. nos gabinetes, uma vez mais, bigodes sisudos e derrotados, têm os dedos feios e duros ao toque. eu não poderei nunca saber, mas juro que os envelopes choram.

o eterno problema dos carteiros é não terem asas para subir às janelas das amadas, que se penteiam longamente em frente aos espelhos velhos das avós. não puderem ser anjos anunciadores, nem mágicos, navegantes, descobridores. e talvez lhes pese o bigode insólito e burocrático, o pêlo encravado sobre o lábio. eu continuo a lançar envelopes em branco da varanda.

quarta-feira, outubro 20, 2004

paragem de autocarro

ele dizia que estava cansado da vida, tudo bem, podemo-nos cansar de muitas coisas, da vida também, é claro, mas ele estava sempre a repetir-se, a dizer o mesmo, a pensar nas mesmas coisas, e claro, acaba por se cansar ainda mais da vida e tudo e de mais alguma coisa que aparecesse. ele era assim. muita gente lhe dizia que ele tinha que mudar. outros, menos radicais, mantinham-no sentado.

ele andava sempre vestido de encarnado, dizia que assim espantava o mal, que era para correr menos perigos. os amigos dele aceitavam a extravagância, vá-se lá saber o que esperar de um louco a quem se nega uma vontade. embora aquela cor lhe trouxesse, muitas vezes, amargos de boca, parecia ser a única coisa que o fazia sentir bem. de encarnado, eu engano o meu destino, sussurrava ele. enquanto não aparecer um touro, pensavamos nós.

a última dele foi pensar que poderia ir a pé até a qualquer ponto do mundo. bem, a última, espalhada pelo tempo, se bem me compreendem. começou por ir a pé ao supermercado, depois a uma cidade próxima. cada semana tentava chegar mais longe. para lá, ia a pé. comprovado o desafio, voltava de autocarro. quando o conseguio fazer até espanha, começamos a ficar preocupados. onde é que isto vai acabar, perguntávamos uns aos outros. ele sempre a tentar ir mais longe, até que desapareceu. onde é que foi? a algum sítio onde não existem autocarros.

terça-feira, outubro 19, 2004

eu não conto a ninguém

lembro-me do tempo em que ficavamos em casa, de face encostada na janela fria, a ver a chuva a cair lá fora. era outubro e as casas todas castanhas. sentíamos sobre o telhado a água que escorria, a minha mãe a sussurrar o algeroz estragado, o telefone a tocar e a dizer o pai não vem jantar, tinha o trabalho, tinha a estrada cortada, a nossa cara encostada na janela fria, as constipações, os chás quentes, as mãos que se tocavam, uma na outra, as casas lá fora castanhas, castanhas assadas a queimar como as carícias cheias de timidez.

lembro-me de quando os casacos nos abraçavam como um colo de gigante e nós sorríamos escondidos debaixo das golas peludas, com gorros a taparem-nos os olhares sempre cúmplices. era outono e saímos para ir à escola e para visitar a avó, sempre a copiar os passos um do outro, os teus cabelos negros a tingirem as nuvens e os meus olhos envergonhados a contar os quilómetros imaginários do vento. as estradas estavam tingidas de folhas secas e molhadas das árvores, eu chamava o teu nome baixinho, como o vento.

lembro-me de ser a meio da noite, de ouvir chamar baixinho, enquanto no quarto ao lado a mãe a rezar pelo algeroz, o telefone que tocava e dizia o pai não vem ficar a casa, um cliente lá longe, as estradas cheias de água, fica na pensão, no hotel, quando fôr fim-de-semana prendas para todos e palavras de quem sempre lá esteve, ouvir chamar baixinho e os lençõis a levantar, a tua mão na minha cara, um beijinho, era a meio da noite, outono, castanho, negros, os teus cabelos, a chuva lá fora, longe como o frio.

sexta-feira, outubro 15, 2004

fugir

não sou um fugitivo e portanto, não vou fugir das coisas certas, não, vou fazer o que tenho a fazer, custe o que custar, andar para a frente, onde é o caminho, seguir por onde fôr preciso, acompanhado ou sozinho, porque não, eu não sou um fugitivo.

eu não sou um fugitivo, não vou deixar de dizer nem de falar, não vou deixar de passar à tua porta, de dizer adeus quando estiveres a fumar cigarrinhos à varanda, não vou fingir que não te conheço, nem que tenho um monte de novos amigos melhores que tu, não, eu não sou um fugitivo.

eu não sou um fugitivo, o meu carro nem sequer é rápido, nem eu sou muito de correr, não vou passar para o outro lado da estrada, não vou acelerar passo para apanhar autocarros, não te vou ligar a meio da noite a pedir-te para mim, não vou fazer as malas, não vou fechar as portas, não vou, porque eu não sou um fugitivo.

quinta-feira, outubro 14, 2004

invenção

queria conseguir inventar uma história para botar um homem dentro, um homem que fumasse calado em frente à janela de uma sala cheia de muitas vidas, muitos anos, muitos dias. queria inventar uma história, ou talvez só fazer uma música, onde um homem pudesse vestir o seu casaco e sair sossegado, de olhar pela calçada, a comprar o jornal e a tomar um café, a dizer um bom dia quotidiano aos conhecidos e a falar de futebol com a calma de uma pronúncia alentejana.

queria conseguir inventar uma história, mas não pego numa caneta. recosto-me mais no sofá e coloco um cd a tocar - calmo, suave. olho de novo o homem, calado. segue para casa, ou talvez não bem para casa, segue para o clube, vai jogas às cartas, vai gozar as piadas de um amigo, vai descansar as pernas debaixo da mesa do xadrez, das damas. vai olhar a televisão e as fotografias velhas nas paredes. vai dizer que se lembra deste e daquele. e vai sorrir.

queria ser capaz de inventar uma mulher, para fazer a história do homem. uma mulher não chega para uma vida, uma vida são semanas e semanas de angústias, felicidades, pequenas alegrias, carinhos e vitórias do benfica. gostaria de ser capaz de inventar a fragilidade e as palavras curtas que se dizem quando se apaga a luz do amor. e nem vale procurar dicionários nem enciclopédias, não é preciso saber quase nada deste mundo. um homem e uma mulher, sem conseguir fugir de um sorriso, quando se olham. queria saber inventar.

terça-feira, outubro 12, 2004

carta de segunda-feira

as mãos suspensas sobre as pernas, de frente para a fotografia, uma cara infeliz para sempre metida dentro da moldura, a descendência a dizer que eras tão feia, e assim fica para a posteridade um negativo do que foste em vida, uma sinfonia orquestrada para me matar o coração a cada encontro, uma beleza depurada pelas palavras que sempre me oferecias, um segredo feito só nosso, sem remetentes no futuro.

no dia do teu enterro, eu fiquei sentado do lado de fora da igreja, a arrancar as pétalas de um malmequer que apanhei de um jardim. as pessoas não me dirigiam a palavra, sequer, tal deveria ser a minha cara de terror perante a solidão em que me deixaste. ao mesmo tempo que digo isto, relembro que quase ninguém estava consciente desse grande amor. então, ninguém me falava, porque ninguém me conhecia. ninguém sabia o que eu estava a fazer por ali.

agora são onze horas da manhã, de um dia muitos anos depois. estou velho, muito mais velho do que o velho que era quando te foste. esta manhã vi-te a passear pelo jardim, de mão dada comigo. sim, foi muito dificil perceber que a tua neta, a tua Carminho, como lhe chamavas, é agora uma mulher como tu eras, e talvez levasse pela mão o mesmo segredo a que tu me deixaste pertencer. escrevo-te.

sábado, outubro 09, 2004

assim como um postal sem destinatário

é melhor ficar por aqui, não ir a mais nenhum lado, pensar: que bom é estar aqui sentado a ouvir a chuva a cair, pensar: que bom é saber que tu existes e ter a idade de todas as cobras venenosas, olhar à minha volta e saber, pertenço a estas paredes, pertenço a estes objectos, e tal como eu preciso deles, eles precisam de mim, é melhor ficar aqui, não ir a mais nenhum lado, pensar: enfim, o amor, essa coisa que nos liga.

deixar que o telefone toque até parar, deixar que o telefone toque sem atender, pensar: sei quem tu és e eu não estou, pensar: sei para onde vou mas não sei como te dizer, e depois todos aquelas recordações a caírem nos meus pensamentos como moedas em telefones públicos, os meus pés a balançarem na cadeira, a chuva nos estores, deixar que o telefone toque até parar, deixar que o telefone toque sem atender, pensar: enfim, a dor, essa coisa que eu sei dizer.

dizer em voz alta que o tempo acabou e que tudo o que eu sei é que não há canções que te definam, pensar: ainda por cima tens os cabelos a escorregar pelos ombros, eu sei disso, pensar: estás longe demais e eu demasiado perto de já não ser mais ninguém, acabou enfim o relato de tudo aquilo que ficou por contar, o que vai restar é uma memória repetida à exaustão nestas tardes, nestas cadeiras, onde eu, a dizer em voz alta o tempo acabou e que tudo o que eu sei é que não há canções que te definam, pensar: enfim, haverá sempre uma estrada.

quinta-feira, outubro 07, 2004

atrapalhado

Ensaiámos sinfonias de carícias quando ainda só palavras nos podiam sorrir e acabamos muitas vezes por adormecer ao som dos vizinhos que partiam para o trabalho. Fizemo-nos andar de olhos vermelhos pela rua e adormecemos, outras noites, nos braços incrédulos de quem mais nos ama. A tudo isso dedicamos um silêncio escrupuloso, desenhando outras notas nos cadernos de música amarelecidos. Enfim a sorte, ou o automóvel, ligou-nos os dedos como se cosem meias: com linha forte e para sempre. Agora dormimos noites pelos sofás, sinais de camas proibidas, e aceitamos os erros um do outro, quando nada se aceita de um amor. Para não cairmos em tentação, fechamos os olhos e olhamo-nos em intermitência.

sexta-feira, outubro 01, 2004

peregrinatio ad loca infecta

volto à velha casa que pertencia à minha infância, refaço o mesmo degrau que dá para a rua onde passam os carros, a porta onde o padeiro deixava o pão todas as manhãs. dou passos pequenos, para ter o gozo de ouvir a gravilha a estalar debaixo dos meus sapatos, comigo vem a Rita, aqui uma intrusa, como se fosse possível entrar na infância de alguém que não nós, por intermédio de um regresso. finjo que procuro nos bolsos as chaves da porta, aquelas chaves que olhava a noite passada quando adormeci, que toquei sempre que parei o carro num cruzamento, num sinal. "era preciso vir aqui, para poderes ser homem?", pergunta-me a Rita na língua das crianças. eu aceno com a cabeça e ela percebe. foi aqui que eu comecei a ser homem, o homem em que muitos anos depois me tornei.

o corredor da casa mantém os mesmo móveis de sempre, agora velhos, a ameaçar cair. a cada três passos, portas à direita e à esquerda, num total de seis divisões. ao fundo, a casa-de-banho. primeiro trecho: à direita, o quarto dos meus pais. o quarto fechado dos meus pais. onde havia as roupas e a cama. pequenos armários nas cabeceiras, do lado do meu pai um candeeiro, do lado da minha mãe o retrato da família. engraçada, a simbologia. ao pai, a ordem da luz. à mãe, a guarda do mistério familiar. à esquerda do corredor, o meu quarto. o quarto meu e dos meus irmãos. éramos quatro rapazes de olhos tristes e cara caída no chão. costumávamos correr pela aldeia, um pouco sem destinho. depois de jantar, de pijama vestido, ouvíamos rádio deitados na cama. era esse o único mobiliário do nosso quarto. quatro camas e um rádio.

segundo trecho: à esquerda, o escritório do pai. a casa da papelada e de alguns livros. onde ninguém podia entrar. só a mãe, uma vez por semana, para limpar o pó que nunca deixava de se acumular. espreito, só, ainda a medo. noto várias garrafas de licor numa das prateleiras. quem lavaria os copos? do lado esquerdo, a sala. um sofá, uma pequena mesa. onde a mãe recebia as tias, conversava. onde depois houve uma pequena televisão, muito rouca, vinda de casa de um primo que já as teria a cores. onde nunca aconteceu realmente nada de interessante. terceiro trecho: a casa do costura e das nossas roupas, de todas as nossas roupas. ao meio a casa-de-banho. à esquerda a cozinha. uma mesa corrida contra a parede, a todas as refeições arrastada para o centro, encenando a sagrada família. era a cozinha que dava cheiro à casa, a minha mãe em volta do fumo do fogão. entrávamos em casa e tentávamos adivinhar o que seria o jantar. era sempre sopa de qualquer coisa.

a Rita segue atrás de mim, segurando-me na mão, percebendo o silêncio necessário a esta peregrinação. páro a olhar na janela da cozinha, a que dá para um pequeno quintal cheio de ervas. ela enconsta-se nas minhas costas com as mãos sobre os meus ombros. aperta-os levemente, percebendo a minha tensão. "foi aqui" e aponto para o quintal, bem no fundo, junto ao muro. caem-me lágrimas. a Rita abraça-me e eu tenho medo. foi aqui, foi aqui mesmo, onde a vida das ervas daninhas ainda não acabou. respiro fundo a sujidade desta casa. entre irmãos, acordámos deitá-la abaixo e vender o terreno. só eu tive a necessidade de ainda vir ver aquilo que restou do que todos nós nos queremos esquecer. certas coisas, é bem melhor viver sem elas.