Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

terça-feira, junho 29, 2004

aparentemente

Esperava o elevador no vão da escada, no nono andar. As luzes apagadas, o Miguel encostado à porta, a sorrir, e a sua silhueta a enterrar-me no escuro... Eu sei que não queria, eu sei que tinha prometido não voltar cá. Eu sei que ele não merece, eu sei que ele só me estragou a vida. Eu sei disso tudo... Mas ele telefonou... ele escreveu-me...telefonou outra vez... Só um café, só uma conversa. E eu adoro-o, continuo a adorá-lo, mesmo depois de tudo o que ele me fez, mesmo depois de tudo o que ele me disse. As traições, as mentiras. sim, lembro-me de tudo. Mas o desejo, a vontade, os olhos dele, a boca dele... Há sempre um mas... E eu vim...
Posso ter feito mal. Talvez esteja arrependida, ainda não sei, ainda não passou tempo suficiente para ver bem como se alastrará esta noite, que mancha ficará no meu espírito. Fomos tomar um café, um café normal, um café de amigos. Como sempre, de inicio, as palavras não saem, não têm vida... mas a pouco e pouco retornámos aquelas longas conversas de noites inteiras. O café fechou (sim, ficámos até ao café fechar) e a conversa continuava. Vem lá a casa, disse ele, tomamos mais um copo, fumamos mais um cigarro, ainda temos do que falar. E eu fui, satisfeita por me deixar assim ser enganada. Eu sabia bem que aquilo não teria senão um fim, o mesmo fim que o Miguel e todos os outros homens com quem andei planeiam sempre. Entrei no carro e fomos.
Parecia quase um filme... tudo estava preparado (desconfio agora que só fomos aquele café escondido porque fecha mais cedo do que os outros)... Música ambiente, as luzes, o whisky escolhido já em cima da mesa da sala, os dois copos, o gelo já preparado no frigorífico... Tinha a sala arrumada... O Miguel tinha a sala arrumada!! Confirmei os seus planos, ele queria levar-me para a cama. E eu continuava a falar do escritório, dos problemas com as minhas colegas, da doença do meu pai, do estado da nação... Via o seu olhar desesperado que confirmava as horas no relógio do vídeo... Duas e meia da manhã... Decidi então ceder... A frase preparada... A pergunta que acciona finalmente o caminho inevitável para o leito... Perguntei-lhe, E os amores, como vão... O Miguel fez um sorriso feliz para dentro e um olhar triste para fora. Dramatizou a sua solidão, encenou a dificuldade de encontrar alguém que o satisfizesse, há mais de dois meses que nada ( os homens, quando falam com mulheres, nunca fazem amor há mais de dois meses).
Ás três e quarenta e sete fumávamos um cigarro na varanda, a noite estava quente, havia um sabor doce na noite de primavera. Ele pensava que me tinha enganado e eu pensava que o tinha enganado a ele. Estávamos aparentemente felizes.... Está na hora de voltar a casa, disse-lhe eu, antes de um último beijo.
O elevador chegou finalmente ao nono andar. Até à próxima, disse ele... Telefona, desejei eu, sabendo já que ele nunca mais o iria fazer. Ao entrar no elevador vi a minha cara no espelho... Sorri... Lembrei-me de ti, Cecília, de como me tinhas avisado, desde a primeira vez, que o Miguel não prestava... Talvez me venha a arrepender... Mas hoje não vou chorar, não o vou desejar, não o vou querer... Hoje ganhei... E ele nunca mais vai telefonar...

sábado, junho 26, 2004

time for dancing

estou parado no meio da pista de dança, uma pista de dança totalmente vazia e despida de tudo. estou parado, quieto, imóvel. nenhuma parte do meu corpo faz o mínimo movimento. não sei há quanto tempo aqui estou, mas mantenho-me. não vejo ninguém, talvez porque as luzes se fixem continuamente nos meus olhos. estou parado no meio da pista de dança vazia. e a música está no máximo, a rebentar.

és um ilusionista, disse-me ela há umas três horas atrás, quando ainda não havia música tão alta, quando ainda estávamos sentados num sofá desconfortável de um canto qualquer da discoteca. és um ilusionista, e depois riu-se, e depois calou-se.és um ilusionista, eu não sei nada de ti. e depois eu ri-me, e depois calei-me. quando começou a música já ela não estava lá.

estou parado no meio da pista de dança. a música parou e alguém se chega ao pé de mim para me avisar de que a discoteca vai fechar. eu sorrio, e depois dou um passo na direcção oposta à saída. porque arranjas sempre maneira de dar a volta a tudo o que te pergunto, porque nunca me dizes aquilo que eu realmente quero saber. eu calei-me, e depois falei. talvez hoje fosse um bom dia para dançar.

look back in anger

eu, que assobio como os passarinhos quando ando pela rua, sentado, quase imóvel, sem saber para onde deitar os olhos, se para a rua se para a televisão, a medo, sempre, a medo. eu, que cresço dez centímetros se estou sozinho e ninguém se importa comigo, que tenho pensamentos normais, como toda a gente, e pensamentos perversos, como toda a gente, a medo, a medo.

eu, que canto fechado no quarto, ali, calado, sem saber por onde deixar os olhos, farto de ler todos os letreiros das redondezas, cansado de tão míope que me tenho deixado fazer, a suar por causa das luzes, ou do calor, ou dos gritos das outras pessoas que festejam a vitória pelas ruas. eu, tão sempre tudo aquilo que sempre me aprisiona, tão sempre tudo aquilo que sempre me liberta, aqui, a medo.

e tu, que te resguardas no silêncio reverente dos sensuais, a deixares-te ficar na minha frente, a procurar o meu olhar, que foge, a tentar o meu sorriso, que se apaga, deves pensar, aí por dentro, que um fogo qualquer se ilumina, apesar de tudo o que veio antes de ti, apesar de tudo o que vem contigo. e eu, que me sento repetidamente para beber uma cerveja, procuro de novo as ruas vazias, onde assobio como um passarinho, para poder pensar em tudo isto.

sábado, junho 19, 2004

breviário de dias como o de hoje

hoje já não há tanto sol. acalmou-se o verão. pelo menos é o que parece. agora já podemos voltar a sair à rua com os olhos abertos. e, quando voltamos a casa, já não temos a camisa suada. hoje já não há tanto sol. agora o verão está calmo. acho eu. hoje saí à rua e tinha os olhos bem abertos. quando voltei a casa, tinha a camisa seca, ainda a cheirar a lavado. o céu está mais cinzento, hoje. faço contas pelos dedos, ainda nem sequer é verão. pois, bem me parecia. hoje não tinha os óculos escuros na mala. fui ao café e vim para casa com a testa seca.

quinta-feira, junho 17, 2004

sorriso à malandro

deixa-me de lado quando fores de viagem, deixa-me de lado, não quero ir. não é a tua companhia, não é, mas eu gosto de estar quieto no meu canto, no meu lado das coisas. gosto. ou talvez não goste. mas estou muito habituado a isto, sabes? e acabar com as habituações é mais difícil do que parece.

deixa-me de lado quando saíres de casa, quero passar por essa experiência de abandono, quero não ter ninguém em casa, quero fazer as camas, arrumar as coisas, sair sozinho para o café, voltar sozinho para dormir, quero não ouvir ninguém sem ser pelo telefone, ver só o que se pode ver nas fotografias. quero. ou mesmo que não queira, deixa-me pensar assim.

e depois, quando já fôr demasiado tarde, quando não restar mais nada para sonhar, quando não nos olharem mais como quem olha para quem vai fazer alguma coisa, ai que bom que vai ser, a inutilidade, o sossego, o nada. [mesmo que agora eu veja em repetição a imagem do outro gajo a dizer-me o que é o nada, o que é o nada]. e depois, bem, depois eu vou abrir as portas, deixar entrar o sol, procurar um cigarro na mala das recordações, pôr uma música bem calminha, esticar as pernas. e vou-te dizer, baixinho, no more máquinas de costura.

quarta-feira, junho 16, 2004

o peso do ar

agora, que já ninguém me fala, decidi abrir a janela e respirar fundo, sem pensar em me atirar. conseguir que ninguém nos fale é como encontrar a chave do silêncio. apesar de ainda haver carros, conversas de café, simpatias desnecessárias em balcões de retrosarias. silêncio. ninguém para nos acordar a meio da noite, só porque existe um lado de lá e um lado de cá. ninguém para nos felicitar por termos aguentado mais um dia vivos. agora.

essa coisa de ver a janela como uma porta de saída para, digamos, a não-existência, é uma história antiga. começou aos quinze ou dezasseis anos, já nem me lembro bem. era como uma prova de bala, daquelas em que um gajo dá um tiro noutro para ver se ele aguenta. nós, e o nós eram uns cinco ou seis gajos que não gostavam de fumar charros quando eram adolescentes, tínhamos esta mania de prever o dia em que íamos conseguir voar da janela de um terceiro andar ou outro superior. a boa notícia é que nunca ninguém o fez. a má é que todos nós sofremos agora dos efeitos colaterais.

mas agora, já ninguém fala comigo. deixaram de achar importante a minha existência. poderei ter sido eu a iniciar o processo, começando por pôr em dúvida todas as boas intenções que alguém poderia ter a meu respeito. e terá sido uma espécie de círculo vicioso que levou toda a gente a deixar de me falar. não que isso me perturbe por aí além. passei uns dias a chorar, para encaixar a coisa, e depois, bem, depois decidi por a cabeça do lado de fora da janela. apanhei ar. soube-me bem.

sábado, junho 12, 2004

manifesto anti-dantas

feliz ou infelizmente, não tenho paciência. não tenho a mínima paciência para aturar essas infatilidades, esses ares de gozo, essa menoridade de todo o tamanho. sim, és pequeno. tão pequenino que, se eu fosse um gajo descuidado, já te teria pisado. assim, páro e digo-te. pró caralho.

não adianta vires dizer, a amizade. não adianta os sorrisos e o preocupado depois de. pouco me importam os teus mea culpas, as tuas máximas desculpas. olho-te de cima, de lado. não adiantam dos teus discursos, muito menos os teus fui eu que. pró caralho.

e se estou com má cara, ou com cara de enjoado, ou a reagir como se algo de mal se passasse na minha vida, tu tens é que acender um cigarro e olhares também para a televisão. vamos todos fingir que nada acontece, está bem?, vamos mesmo fazer uma grande esforço de conjunto de união, para fingir que estas nossas caras são as mesmas de sempre. e em silêncio poderei pensar. pró caralho.

terça-feira, junho 08, 2004

não exceder o programado

penso:
hoje não escrever. hoje não aparecer sequer na net - vou-me embora, para outro sítio, onde eu não me conheça e não conheça ninguém.

porque:
esta tarde - sentei-me à mesa do café e comecei a pedir cervejas até achar que já eram horas para voltar a casa, jantar.
esta tarde - biblioteca, procurar os livros certos para trazer para casa. mesmo tendo na ideia, provavelmente não os vou ler.
esta tarde - olhar para a mesa e vê-la, não ter a certeza, dar uma volta pelos livros, dizer olá, dizer adeus.

telefono:
ah, ok.
sim, estou calado. não, não estou zangado. sim, adeus.

penso:
hoje não escrever. ficar quieto, calado. hoje não. talvez, ir dormir já, embora seja cedo demais. talvez, saltar pela janela, está fresco lá fora. talvez. hoje.

porque:
sem razões.

penso:
calar.
ou
cortar os dedos e deixar o sangue encher o balde do lixo debaixo da secretária.
ou
sair a correr de casa e permitir um carro, atropelamento, culpa de quem.
ou
(...)

segunda-feira, junho 07, 2004

anotações sobre um homem

assinava sempre o nome com dupla consoante, era um costume que lhe vinha da adolescência em que passava longas tardes na casa da família a ouvir os infindáveis relatos do seu avô. dizia-se uma pessoa de família, acostumado que estava a respeitar os mais velhos e os nomes como pai, mãe, tio. ainda que o encontrasse muitas vezes na pequena loja onde ambos comprávamos botões de punho, não mais que um cordial acenar de cabeça nos ligava. éramos simples conhecidos.

não sei quando comecei a desenvolver este interesse na observação das pessoas, muito menos a data em que considerei este homem alguém mais interessante que os outros para observar. penso muitas vezes se não terá sido uma circunstância aleatória, como o tamanho das patilhas ou o jeito de pousar o chapéu no pequeno balcão da loja. posso até afirmar que, nos primeiros meses, nada de produtivo terei avistado nele. mesmo nada. no caderno onde registo as observações só tenho pequenas notas como, avistei-o na loja esta manhã, à hora do almoço passou por mim e acenou, estava sentado no café quando voltei a casa. pequenas coisas.

hoje olho-o, e na forma como repousa as mãos nos braços do meu sofá, encontro algum daquele brilho baço que ilumina a face dos santos nas igrejas antigas. um copo de whisky caído, aos seus pés, criou uma pequena poça alcoólica. o cabelo mantém-se impecavelmente penteado, apesar dos olhos muito abertos, da língua caída fora da boca, cheia de espuma muito branca. morte por envenenamento, hão-de dizer. pois sim, como se não se pudesse morrer por outras razões. eu diria antes um amor desmesurado, uma loucura de um homem sensível. anoto no meu caderno as últimas observações.

no more sad stories

este silêncio, este silêncio, este silêncio. mesmo quando ligo a música, este silêncio, se toca o telefone, este silêncio, se saio à rua, este silêncio, se me mergulho em sonhos, se me mergulho em cores, se me evado de mim, este silêncio, este silêncio, este silêncio.se arrumo, o silêncio, se desarrumo, o silêncio, se me visto, o silêncio, se me dispo, o silêncio. sim, todo o silêncio.

a minha mão sozinha, dependurada, quando acordo de manhã, dependurada, a minha mão que me remexe o corpo mas não me encontra o coração, sozinha, em cada número que marca no telefone, sozinha, quando te fala, dependurada, se tomo banho, ainda que molhada, dependurada, o meu corpo no espelho, a mão, sozinha, se te vejo, se não te vejo, se te chamo, se não chamo, quando eu grito e quando eu choro, dependurada, quando seco as lágrimas, sozinha, sempre, a minha mão, dependurada, como numa fotografia, sozinha.

e depois, e depois, e depois. os meus óculos escuros não me deixam dizer que eu estou a afundar-me, a afundar-me para dentro de mim, onde não há limites, como nos poços, como nos mares, como nos sonhos. os meus óculos escuros escondem o que a minha voz demonstra, as cadeiras vazias são toda a gente que nunca esteve ali, o livro fechado é uma história acabada, os poemas escritos são fugas, fugas para todos os lados, como os ratos em barcos que se afundam, afundo-me, afundo-me em mim próprio. e tu dizes, não escrevas mais histórias tristes. e eu obedeço.

domingo, junho 06, 2004

carta de domingo

pois, é domingo. o tempo está assim-assim, nem calor nem frio. eu? eu fiquei em casa. andei a passear descalço, por cima das carpetes da minha mãe. levei o computador para junto da televisão e sentei-me a jogar enquanto fazia zapping. pois, é domingo.

não estava a dar nada de jeito, como de costume. no jogo, ia perdendo, níveis atrás de níveis. num momento, zapping, não só pelos canais principais, mas por todos os canais da televisão.resultado: punheta em canal codificado.

a cama. a meio da tarde. o jornal, a ler o que já tinha treslido antes. a cama. a meio da tarde. o telefone calado. o jornal. a cama. a meio da tarde. o sono. os olhos s fecharem-se. a cama. a meio da tarde. a meio da tarde. a meio da tarde. a meio da tarde. o sono.

mas quando é que se janta? mas porque é que se janta?

fechado no quarto, mais uma vez. ligo a música, só para dar um ambiente. é domingo, não saí de casa. nada de interessante ou estimulante para se fazer. ligo o computador e escrevo-te esta carta. esta carta que diz mais do que aquilo que eu queria transmitir. sempre dito ao contrário, como tudo o que eu digo. mas, é domingo. pois, não saí de casa.

sábado, junho 05, 2004

nas outras horas

agora que tornámos todas as coisas muito mais difíceis do que elas são na realidade, sentamo-nos sobre as nossas pernas e olhamos para os jardins que se construíram nos andares cimeiros dos nossos prédios. é uma ocupação como outro qualquer, digo-te. tu sorris e procuras um sítio onde encostares a cabeça. eu tenho as calças sujas e já tirei a camisa, para fingir que estou na praia. ao passares a tua mão pelo meu peito, algo se arrepia em nós.

ando pela rua e tento imaginar-me fora destes sítios todos tão familiares. ponho-me noutra pele e penso, agora não sou daqui. anda-se na rua da mesma maneira, mas as coisas ficam diferentes. sentimos mais o peso do nosso corpo. não é a mesma coisa, ler um jornal com as letras que sempre reconhecemos ou ler um outro jornal qualquer. ontem era de noite e de noite todas as coisas sabem melhor. como se estivéssemos mais perto ou assim. tu dizias foder e eu dizia amor. nem um nem outro sabíamos do que estávamos a falar.

amontoei papéis e papéis com anotações mínimas em cima da minha secretária. por lá deixei ficar também alguns jornais e as chaves de diversos apartamentos a que tenho acesso. livros, sim, livros. é um trabalho, minha querida, não tem nada de romântico, digo-te. tu olhas-me e sorris. vejo o teu corpo a abandonar o meu espaço, embora quisesse ficar. é tarde, fecha bem a porta, os ladrões. tu sais de casa e deixas um lenço teu sobre a mesa do hall. podíamos ser felizes, diz a vizinha da porta em frente. são onze e trinta e quatro. estou sentado sobre as minhas pernas.

demasiado real

este aqui sou eu, a tentar passar despercebido.
sim, estou longe, como querias que eu pudesse estar?

farto-me de pensar, pensar, pensar.

estou fora da tua vida, não estou?

falo contigo e penso que não.

penso que não.

estou fora da tua vida, não estou?

quinta-feira, junho 03, 2004

que sabor é esse que trazes nos teus lábios?

leio como se a cegueira se aproximasse. como se não voltasse esta fome de papel, nunca mais. aguento o silêncio, e rumo ao outro, aquele que está onde eu só o vejo com os olhos. nada de corpo, nada de sangue. não há pele, aqui, que não seja minha. e se procuro um canivete, é para me abrir, em dois, ao mundo.

decidi comprar um casaco novo, para estes dias de verão que prometem aproximar-se. tem um sorriso e um abraço juntos. nos bolsos, todos os papéis que conseguir encontrar. num saco, que trago sempre a tiracolo, trago o megafone escondido, para me fazer notar quando não restar mais ninguém que me procure. dizem-me, és difícil. e quando é de noite, choro na cama.

fico de tronco nu perante aqueles que me querem atacar. estou despido, sim, despido e vulnerável para os beijos que voam sem destinatários. digo, não sei para onde vou, e depois fecho os olhos e tenho a cabeça cheia de coisas por dizer. onde agora estou calado, há um monte de gente a falar cá dentro. olho o roupeiro, tiro todas as roupas para fora. sento-me numa gaveta e leio. como se a cegueira.

terça-feira, junho 01, 2004

poema para o dia da criança daqui a dez anos

talvez,
daqui a dez anos,
me digas,
Filipe,
isso não interessa nada.
talvez
me digas,
que raio,
já passou tanto tempo.
mas hoje,
e nada parece mais importante para ti,
hoje,
é dia da criança.

porque agora,
tu sabes,
o que te faz voar
são os cabelos loiros de uma boneca,
uma batida forte numa música,
uma piada frágil numa novela.
daqui a dez anos,
rir-te-ás comigo
das coisas que te fazem rir hoje.

e porque hoje é
dia da criança,
e também,
porque me pediste uma prenda,
escrevo-te este poema
em que talvez pouco percebas.
mas, garanto-te,
daqui a dez anos,
dificilmente encontrarás,
algo que te faça sorrir mais.

tudo passa

gostava ainda de saber o que te passou pela cabeça quando decidiste sair assim de casa. não sei, podias ter deixado um recado qualquer, uma pista. não. saíste, como se fosse sempre preciso sair a correr dos sítios onde não estão as coisas que tu queres, e eu fiquei esquecido, nem sequer lá dentro, fiquei esquecido, como ficam os papéis que esvoaçam pela janela. olha, nem sei se fiquei triste. fiquei mais comigo, o que talvez vá dar ao mesmo.

o que eu sei, ou talvez pense só que sei, é que enquanto tu te pões a andar por esses sítios mais escuros onde eu não te vejo nem te toco, eu continuo cá fora, a fazer o meu ninho com pauzinhos e folhas que vou achando pela rua. não é mais confortável do que qualquer outra coisa. é uma boa maneira de me esconder. tu sabes. o que me parece estranho é que as pessoas que ainda não me conhecem, me consigam agora passar a conhecer. dizem, tu foges. dizem, tu escondes. eu aceno devagar com a cabeça enquanto meto mais um bromalex na boca.

não, não, senhor doutor, não há nada de que eu me queixe. olhe-me bem nos olhos e diga-me o que vê. diga lá, será que eu consigo mostrar alguma coisa? passo a minha língua pelos dentes e sei que os tenho todos, pelo menos todos aqueles que me fazem falta para morder. chovem convites para me levarem a foder, diz ela. eu sorrio para dentro e tento fechar as orelhas. sei lá, é mais calmo quando há silêncio. mas, ainda assim, eu aceno com a cabeça devagar, o que faz a cama ranger. tal e qual como quando éramos pequenos e fazíamos frases complicadas com a imaginação.