já é tarde e eu ainda aqui, de casaco vestido, os olhos chorosos, como sempre, os lábios mordidos pelos dentes, tão perfeitinhos, o som das vozes, todas a falar ao mesmo tempo, todas a repetir as mesmas coisas, já é tarde, podia haver música, podia haver mais chá, chávenas mais bonitas sobre a mesa, podia haver sol, podia tudo ser de outra maneira, menos os teus olhos, tão abertos e calmos, do outro lado da mesa, menos os teus dedos, agora quietos e desejáveis, como uma maçã, despreocupada, que encontrássemos na árvore do jardim do paraíso.
lá fora está frio e eu esqueci-me de trazer o meu cachecol. quantas semanas demoraríamos deste café até ao fim do mundo se fossemos a pé? penso nestas e noutras perguntas idiotas enquanto os meus olhos páram em frente aos teus. ficamos sérios até que a nossa pele ganhe um tom corado e depois sorrimos e regressamos à confusão de vozes umas em cima das outras. voltamos sempre aqui, os amigos. podia haver música e podia não ser já tão tarde. podiamos ter todo o tempo do mundo e estarmos esquecidos de que a existência de deus importa alguma coisa. podíamos apanhar um avião com hospedeiras que "hablassem espanhuel".
encolho os ombros enquanto te vejo ir embora pela calçada, sem sequer um olá. os amigos sorriem entre nós. eu encolho-me do frio, fecho o casaco, e discorro mentalmente sobre as virtudes do tempo e da solidão. apresso-me a encontrar-te defeitos para não cair na mesma velha história de ter um fraquinho por alguém. sei como são frágeis todas as decisões que consigo tomar por mim e aprendo muito devagar que os outros são tão frágeis como eu. já é tarde e eu ainda aqui.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
sexta-feira, novembro 19, 2004
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1 comentário:
Continuas magnífico.
Beijo, Miriam*
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