Coçava os tomates enquanto olhava para o outro lado da rua onde estava ela, na paragem do autocarro, a tentar abrigar-se de uma chuvinha de merda que caía aquela hora. Era sempre o mesmo ritual de final de tarde. Ela saía da boutique às seis da tarde e tinha autocarro às seis e um quarto. Eram sempre uns dez minutos que ela gastava ali sem fazer nada. Ele, a essa hora, saía sempre da oficina, que ficava em frente. E deixava-se ali estar durante aqueles dez minutos, a medi-la, a observá-la, a conhecer todos os seus gestos. Sim, ele já conhecia todos os gestos que ela poderia fazer. Até que ficou, como se diz?, levemente apaixonado. Como se existissem coisas destas assim leves.
Encontrou-a uma vez num baile. Uma festa onde ele ia todos os anos, com uns amigos lá da oficina. Era uma espécie de tradição. Ela estava lá, com as amigas e com o namorado. Sim, ao que parecia, ela tinha namorado. Mas o que pode fazer um namorado quando a paixão arrebata um homem embrutecido pelas circunstâncias da sua própria vida? Nesse dia ele ficou, como no resto de todos os outros dias anteriores, quieto. A observá-la. Ninguém reparou que, num determinado momento, ele colocou a mão entre as pernas e coçou os tomates. Isso faz tanta gente quando está assim, encostada, ao balcão do bar de um baile.
Quando o encontraram, ontem à noite, tinha uma enorme mancha de sangue na camisa, as mãos e a cara sujas de terra, o mesmo olhar vago de sempre. Estava à beira da estrada, perto do pinhal, à saída da cidade. Não disse nada, como nunca disse nada a ninguém. Era um tipo pacato, daqueles que nunca se chateou com ninguém no café, nunca bateu com uma porta, nunca levantou a voz para a mãe. Levaram-no para o hospital e esperaram. Um dos bombeiros que o levou escreveu no relatório que tinha achado estranho que o indivíduo, naquele estado, tivesse passado o tempo todo da viagem a coçar os tomates. O corpo dela foi encontrado de manhã.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
domingo, novembro 09, 2003
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