tenho os dedos das mãos frios... muito frios mesmo. queria dizer-te que ando para aqui a olhar as pessoas das mesas que sobram pelo café e que não encontro nada nem ninguém melhor do que eu. sim, é chato esta vida de gajo triste numa terra de merda. afinal, tinhas tu razão, não há mesmo nada que se possa fazer por aqui. saio das aulas pelas quatro da tarde e sento-me aqui. exactamente daqui de onde te escrevo. gostava de te poder contar histórias bonitas. sim, eu sei, tu esperas que eu te conte histórias bonitas. mas sabes bem como é difícil inventar histórias assim, das que tu gostas.
peço uma imperial. peço várias imperiais. passa um casal de alunos meus e diz-me olá stôr enquanto correm não sei bem para onde. ainda nem me dei ao trabalho de ir procurar o que há pela vila, para além deste pequeno triângulo escola casa café. peço várias imperiais. molho a borda do papel em que te escrevo. não volto atrás, escrevo tudo até ao fim. assim levas uma marca da minha vida, sabes, este papel fui eu mesmo que toquei, esta é mesmo a minha letra e esta é a mesma imperial que eu estou a beber enquanto penso nestas coisas. sim, aqui a vida é real. eu bebo para a literarizar.
quando a tarde começa a esfriar, o homem do café olha-me com cara de quem me queria ver ir para casa. a essa hora peço um vodka, para aquecer. ele sabe que eu nunca saio daqui antes das dez, onze da noite. não aguento entrar naquela casa vazia, ficar lá sozinho com esta minha imensa depressão de professor em escola de província.ainda pensei em tornar-me numa espécie de régio ou vergílio ferreira. eu sei, eu e as minhas ideias parvas. ainda pensei em escrever e em elaborar um enorme tratado filosófico neste exílio. mas não, peço imperiais, peço várias imperiais. e quando vou para casa é com aquele enorme peso nas pernas. a bebida não me excita nada.
escrevo-te daqui como quem diz socorro. como quem olha sem conseguir soletrar uma palavra mas tem no olhar todo o desespero do mundo. eu sei que sou um pouco trágico, exagerado até. mas é esta minha tendência para ser muito pior do que sou que me faz cair neste buraco. peço-te desculpa por ficar aqui parado, a beber, só te escrevendo esta carta, por muito cheia de mim que ela siga. eu estou aqui e não consigo sair antes das dez ou onze da noite. como se fosse um imponderável, esta minha entrada nos infernos. clamando por rimbaud, sem poder molhar os pés, sequer pô-los fora da barca.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
quinta-feira, novembro 13, 2003
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