mami, dizia ela, deixa-me ver a rua, e a mãe a dar-lhe palmadinhas nas mãos e a passar-lhe os lábios pela testa a confirmar que a febre não descia nem um bocadinho. deixa-me ver a rua, deixa-me ver a rua, repetia ela até à exaustão em que quase adormecia. a mãe levantava-se um pouco, a tentar certificar-se que a casa continuava igual para além daquele quarto em que permanecia fechada há dias. a febre, uma febre estranha que aparecera sem aviso e sem razão ainda descoberta. que tornava a pequena mariana mais pálida, mais frágil ainda do que já era. embora não lhe tirasse aquela ânsia de rua que sempre tinha desde muito muito pequena. mami, deixa-me ver a rua, dizia ela, recuperada do sono. e a mãe sentava-se de novo ao seu lado.
lá fora chovia chovia chovia, como não chovia há imensos imensos dias.o céu estava escuro, aquele cinzento escuro da massa de cimento fresca. e a chuva caía como caem os prédios, os tijolos, as marretas nas poças de água. os vidros pareciam querer fugir ao dilúvio, como que ondulando com a força da água e do vento. não se via ninguém. só faróis de carros que seguiam muito devagar, a tentar encontrar o caminho por entre aquele oceano entre prédios. as lojas pareciam já ter fechado. três da tarde e já era noite há tanto tempo. raquel, a mãe, deixava cair uma lágrima de desespero. com o tempo assim ninguém viria visitá-la, ajudá-la com um olá. com o tempo assim nem a avó, nem o primo, niguém viria passar a mão pela testa da pequena mariana.chovia chovia chovia.
não há rua nenhuma para ver, mariana, está tudo escuro. mariana de olhos semi-cerrados a tentar perceber as palavras da mãe. não há rua, a febre, dói-lhe a cabeça mas ela ainda não sabe, só tem um sono que não consegue explicar, nem sabe como se diz, apenas lhe apetece ver a rua, os carros, pessoas, qualquer coisa, apetece-lhe ver os desenhos animados, a televisão, o papá, apetece-lhe qualquer coisa que ela ainda não sabe dizer, mas é bom estar ali, com os miminhos da mamã, não há rua nenhuma para ver, está tudo escuro. escuro, deve ser de noite, e o papá?, ainda está no trabalho, a ganhar o dinheirinho, escuro, deve ser de noite, não está cá ninguém, e a febre, tanta coisa em que pensar, tanta coisa que mariana ainda não sabe dizer, mami, deixas-me ver a rua?, não, e a avó?
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
sexta-feira, novembro 14, 2003
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