Tinhas um copo, com uma ligeira porção de leite a tapar o fundo, sobre a mesa. Com os pés esticados sobre a mesa da sala, olhavas a televisão desligada como se passasse um filme daqueles que não gostas de perder. Tinhas as meias azuis calçadas. As pernas, pequenas e brancas, lisas como um lençol doce. Respiravas solenemente sobre a camisa verde que um namorado qualquer dos antigos havia deixado aí em casa há uns tempos. Tu respiras sempre solenemente.
A mão que abraça um prato de corn flakes parece tão frágil como os cristais que a tua mãe guardava com religiosidade no armário da sala de jantar e que só deixava que as visitas vissem ao longe. É essa mesma mão que usaste a noite passada para expulsar um gajo da tua área de acção num dos bares onde te prolongaste. A tua fragilidade só é comparável à ferocidade que aplicas nas tuas relações com as pessoas de que não gostas. E por isso, muitas dessas pessoas gostam de ti.
Se alguém te espreitasse pela janela, facto impossível na realidade, visto morares num oitavo andar, encontraria um bom motivo para um retrato à la Mona Lisa. Se fosse um pintor renascentista, talvez fizesse um esboço e te convidasse a posares para ele um dia mais tarde. Com os devidos arranjos, criar-te-ia um ambiente propiciamente clássico. Um impressionista talvez te oferecesse um déjeuner sur l’herbe. Eu ficava lá parado, inquieto, a olhar.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
domingo, novembro 02, 2003
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