Tenho debaixo da cama uma telefonia que só toca quando eu quero. Eu sei que pode não ser agradável para todos os restantes ouvintes, mas naquela telefonia mando eu. Tenho vinte e quatro anos e vinte quatro rosas enfiadas numa jarra. A telefonia tem um leitor de cassetes, o que só serve para enervar o meu vizinho do lado. Lamento ser um resquício de antiguidade neste tempo dos leitores de cd’s. mas a minha vida tem sido assim, sempre um passo atrás na tecnologia. E nem o facto de ter aprendido a escrever me pode servir de muito. Afinal, estou aqui fechado. Ou não?
Uma enfermeira tapa-me com uma manta. Pensa que tenho frio. Eu não lhe digo nada. Pagam-me para estar calado. Sê doido e cala-te, já dizia o capataz. Eu obedeço. Aprendi que é bom obedecer. Um gajo leva menos porrada e no fim até nos deixam ir tomar café lá fora à hora da bola. O gajo da tasca não aprecia mas entretanto já percebeu que eu sou normal. Só aqui dentro é que tenho que me fazer passar por assim-assim. Por isso ligo a telefonia às horas do relato. Para que toda a gente saiba que eu não respeito o silêncio. E depois fico três semanas de castigo, três semanas a ouvir relatos e terços. Gosto de ouvir o terço. É como um jogo que acaba a zero a zero.
Por cá chamam-me Zézito, no café Sr. Zé e lá em casa, onde eu já não vou nunca, tinham a mania de me chamar Afonso de Albuquerque. Eu sei, é estranho. Mas um gajo tem que ter uma imagem fria e insensível para ser alguém na vida, ainda que o projecto seja ser maluco. Quando ando de autocarro gosto de me sentar nos bancos de trás e de esticar as pernas para o lado do vidro. Mas eu já nunca ando de autocarro. Agora, ligo a telefonia e ponho numa estação esquisita. É como se andasse de autocarro, a ouvir música que não gosto. O gajo do lado queixa-se. Eu cuspo para o ar. Esta telefonia só toca quando eu quero.
Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)
segunda-feira, novembro 03, 2003
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