Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

terça-feira, janeiro 11, 2005

quando o barco atracar no cais

Luzia, se tu soubesses, tenho 46 anos, tenho 46 anos a mais, e vejo que cada dia passa mais depressa, sempre tão depressa, a cada dia que passa e eu a acordar de madrugada para ir para o trabalho, a acordar de madrugada sem uma ponta de sorriso esquecido no canto da boca, sempre a mesma rotina de fazer a barba, tomar banho, o café a correr, o cigarro mal apagado antes de entrar no autocarro, Luzia, dá-me vómitos, dá-me vómitos toda aquela gente, todas as manhã, Luzia, se tu soubesses.

Manuel, como te posso dizer, eu a acordar todas as manhãs e sem sentir que tenho um homem ao meu lado, eu a acordar todas as manhãs e a sentir-me mais velha que a minha mãe e a minha avó juntas, deus as tenha lá no céu, eu a acordar todas as manhãs, e sempre a pensar, como será o dia de hoje, o que me poderá acontecer, todas as manhãs, e a saber sempre, sempre, que não há nada de novo, nunca há nada de novo, Manuel, tenho 41 anos, tenho a idade das actrizes do cinema, mas para mim ninguém olha, por mim, ao que parece, já ninguém se interessa.

Luzia, se tu soubesses, oito horas por dia naquele escritório é uma eternidade, oito horas por dia ali fechado, sem uma cara diferente, sem uma voz lavada, sem uma vista diferente pela janela, oito horas e o rádio sempre na renascença, oito horas por dia e sempre as mesmas notícias, ali fechado, Luzia, se tu soubesses, tenho 46 anos, tenho 46 anos a mais, e oito horas depois de estar ali fechado, o cigarro mal apagado antes de entrar no autocarro, Luzia, dá-me vómitos, dá-me vómitos toda aquela gente, todo aquele suor, Luzia, oito horas fechado no escritório.

Manuel, como te posso dizer, os putos saem contigo de manhã e voltam contigo à noite, é sempre comprar pão e tomar um café, é sempre Fátima Lopes, Sofia Alves, é sempre enganar a fome com qualquer coisa, é sempre passar a ferro, fazer as camas, pensar no jantar, telenovela, telenovelas, pensar no jantar, o que vão eles querer hoje, telenovela, telenovelas, Manuel, tenho 41 anos, tenho a idade das actrizes, eu fico em casa a ver telenovelas, muitos dias nem sei se faz sol ou se chove, telenovela, telenovelas, eu tenho a idade das actrizes.

Luzia, se tu soubesses, chego a casa sempre tão enojado, chego a casa sempre tão doente, e os putos que não se calam, e telenovela na merda da televisão, nem sequer consigo ler o jornal direito, nem sequer consigo pensar limpo, os putos não se calam, a merda da televisão na telenovela, Luzia, se tu soubesses, e eu que nunca te digo nada, chego a casa tão enojado, a merda da televisão, eu nunca te digo nada, Luzia, se tu soubesses, que não há nada para te dizer quando um gajo chega a casa tão enojado, a merda da televisão e os putos que não se calam.

Manuel, como te posso dizer, o jantar na mesa e tudo pronto sempre a horas, já tinha tantas saudades vossas, ver-vos, ver-nos todos juntos, já tinha tantas saudades vossas, e tu calado e os putos aos gritos, o jantar na mesa e eu ali, Manuel, porque não falas, eu queria saber quem viste hoje, porque não falas, eu queria saber o que fizeste hoje, eu queria saber porque não me beijas, eu queria saber porque não te agarras a mim e choras comigo, Manuel, eu tenho 41 anos, eu queria saber porque é que eu tenho a idade das actrizes e tu nem para chorar me olhas, Manuel, como te posso dizer.

Luzia, quando é de noite, tenho medo que o dia volte, tenho medo de voltar a ter tudo outra vez, voltar a repetir tudo outra vez, Luzia, quando é de noite, eu deito-me envergonhado, quando é de noite, espero que tu adormeças e choro devagarinho para não me ouvires, quando é de noite, Luzia, se tu soubesses, eu tenho 46 anos e só oiço a voz do meu pai aos berros, os homens não choram, Luzia, eu tenho 46 anos e espero que tu adormeças para chorar devagarinho.

Manuel, quando estou na cama é ainda pior, pensar na alegria que tivemos quando compramos esta cama, a cama dos nossos sonhos, a cama que foi do nosso amor, e agora, Manuel, a cada noite que passa, Manuel, ficamos cada vez mais longe, Manuel, e eu fecho os olhos com tanta força, com tanta pressa de adormecer para não me lembrar que estou ali, Manuel, como te posso dizer, depois parece-me que te oiço a chorar, Manuel, para que há uma criança na cama deitada, a chorar no teu lugar, e eu fecho os olhos com mais força, e ainda com mais força, para já não estar ali quando conseguir finalmente adormecer.

Luzia, se tu soubesses, trago-te para passear neste fim-de-semana, trago-te a passear para veres o mar, para sentires a brisa quando a janela do carro aberta, trago-te para a rua para ver se limpo a cabeça, para ver se me esqueço, deixo os putos lá em casa para eles gritarem à vontade e trago-te para veres o mar, sabes, é bonito vermos o mar juntos, sabes, eu gosto de vir ver o mar, ver os outros carros com gente nova, sabes, e vê-los aos beijos, agarrados, e vê-los aos beijos, agarrados, sabes, Luzia, e acho que quando te trago a ver o mar, sou um puto outra vez, sabes, eu trago-te a ver o mar, acendo um cigarro, e fico a ver a malta nova nos outros carros aos beijos, sabes, nos outros carros a fazer o que eu queria fazer, sabes, se eu não tivesse 46 anos a mais, e parece que fico com a cabeça lavada, sabes, trago-te a passar neste fim-de-semana.

Manuel, tu sempre calado e o mesmo passeio de domingo à tarde, o mesmo relato de futebol, o mesmo trajecto, o mesmo vento, o mesmo mar, como te posso dizer, eu leio uma revista, e deixo-me ficar, pelo menos é rua, pelo menos é um ar, apesar do mesmo ar de todos os domingos, como te posso dizer, eu tenho 41 anos, a idade das actrizes, e tu trazes-me para junto ao mar para olhares para os outros carros, para olhares para a malta nova aos beijos, e acendes um cigarro, eu sei que isso te dá prazer, Manuel, mas eu tenho 41 anos, como te posso dizer, tenho a idade das actrizes, e apesar do vento, e apesar do ar, e apesar do mar, eu tenho 41 anos, Manuel, e já não te consigo aguentar.

1 comentário:

Luis F. Cristóvão disse...

Tudo indica que uma adaptação deste texto vai estar em cena no dia 18 de Março, à noite, na sede do Fórum Cultural de Torres Vedras, numa noite de perfomances artísticas organizada pelo Académico de Torres Vedras.

Uma boa oportunidade para quem quiser vir conhecer esta bela localidade... rs rs rs!