Arquivo do extinto blogue Esferovite- a vida em pedaços (13-08-2003/ 4-01-2006)

segunda-feira, outubro 13, 2003

quarto

passei o dia todo a pensar que tinha que arrumar o quarto. não um pensamento simples ou fugidio, nada disso. desde o momento em que acordei logo se assomou à minha cabeça a ideia de arrumar o quarto. não uma ideia pacata ou benemérita. o que se passa é que encaro o arrumar o quarto como uma necessidade premente da minha sobrevivência, uma problemática suma do meu existencialismo privado neste dia de outono. em todos os telefonemas que fiz, em todas as conversas que tive, em casa ou na rua, em todo o lado, referi a necessidade de ter que arrumar o meu quarto como elemento primordial da minha existência, não para hoje, mas para a eternidade, para todo o sempre.
eu sei que pode parecer idiota, eu sei que muita gente pode não me compreender, mas a verdade é que arrumar o quarto é algo que me incomoda sumamente. apesar de eu, exteriormente, parecer uma pessoa totalmente banal, apesar dos meus interesses se basearem na importância das filosofias de vida orientais ligadas ao funcionamento artístico de uma sociedade cada vez mais impregnada por necessidades consumistas, apesar de eu preferir ir ver peças de teatro pós-moderno em detrimento de sair com amigos para um café beber imperiais e ver o futebol, apesar de tudo isso, apesar de acreditar que o mundo espiritual é bem mais forte do que qualquer emoção carnal que eu possa ter, eu acho que hoje nada é mais essencial para mim do que arrumar o meu quarto.
quantas noites de amor foram passadas sobre aquele colchão, quantos poemas escritos naquela secretária, quantos cigarros fumados com os cotovelos apoiados naquela janela, quantos telefonemas eróticos abafados pelo escuro da luz apagada, quantos livros lidos imaginando que estava à luz de velas, quantas promessas de " a partir de hoje nunca mais farei isto" e " a partir de hoje farei sempre aquilo", quantas coisas indizíveis e quantas delas enumeráveis, quantas coisas ali se passaram que ninguém nunca vai saber, quantas, quantas, quantas. e, apesar dessa importância se ter tornado num sintoma de uma doença qualquer contra a qual me parece impossível precaver, não procuro outra cura senão a arrumação in loco do meu quarto. e mesmo assim deixo-o desarrumado.

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